segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Blaze Bayley, operário e doutor em heavy metal

Blaze Bayley em Brasília, 18 de janeiro de 2020

De todas as grandes figuras do rock mundial que nos visitam com certa frequência [Paul McCartney é hors-concours], o britânico Blaze Bayley (ex-Iron Maiden) é um dos mais assíduos. Caso seja um artista organizado (e deve ser), o próprio deve saber quantas vezes esteve no Brasil, a trabalho ou não.




Blaze Bayley passou por Brasília mais uma vez, em 18 de janeiro de 2020, no Toinha Brasil Show, casa dedicada ao rock, bem longe dos prédios administrativos localizados no centro da cidade. Noite de sábado quente na capital do Brasil (é verão), os que lá estiveram saíram de alma lavada por tudo aquilo que o heavy metal promete entregar: energia, alto astral catártico, e um punhado de músicas vibrantes tocadas com mucho gusto e virtuosismo, como de praxe.




Toda vez que Blaze Bayley (nascido Bayley Alexander Cooke, em 29 de maio de 1963, em Birmingham, Inglaterra) vem ao Brasil, é uma celebração para os amantes do rock pesado, sobretudo, do Iron Maiden. Sua primeira vez no Brasil foi quando ainda tinha cabelos na cabeça, em 1996, na The X Factour, época em que o Iron Maiden foi headliner do festival Monsters of Rock, tocando para uma audiência de 55 mil espectadores, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo.

Monsters of Rock (Estádio do Pacaembu) (1996), São Paulo

Iron Maiden - The X Factor (1996)



Blaze Bayley foi vocalista do Maiden, entre 1994 e 1999, quando Bruce Dickinson esteve fora, imaginando que a carreira solo era um bom caminho a seguir. Com o Maiden, Bayley gravou os álbuns The X Factor (1996) e Virtual XI (1998), em época de incerteza para o grande grupo metal britânico.

Iron Maiden - Virtual XI (1998)
Nesse período – segunda metade dos anos 1990 – a indústria fonográfica ainda era dominada pelas majors e procurava alternativas, após a avalanche e saturação do grunge e do rock dito alternativo. O heavy metal já não vendia aquele tanto. A morte de Kurt Cobain, em 5 de abril de 1994, culturalmente significou um certo fim do mundo do jeito que o conhecíamos. A massificação do uso de computadores, celulares e a internet foi o capítulo seguinte.

Iron Maiden, fase Blaze Bayley (1996-1999)
Os dois discos do Iron Maiden, fase Blaze Bayley, costumam ser citados como obras menores na discografia da banda. Observem que, em 1996, havia passado mais de uma década do furor causado por obras como The Number of The Beast (1982) e Powerslave (1984). Na contabilidade, também fazia 11 anos da arrebatadora presença do grupo na primeira edição do Rock In Rio (1985). Quando da saída de Dickinson, o Iron Maiden tocava em lugares menores, o que não foi o caso quando o grupo – com Bayley nos vocais – esteve no país, no citado festival Monsters of Rock (1996). Graças aos fãs, a banda percebeu o poder enorme que tinha, ainda mais em época crucial de mudanças.


Na turnê que o trouxe de volta a Brasília, Bayley comemora 25 anos de sua passagem como vocalista da banda. Logo, o repertório foi todo dedicado às músicas dos discos The X Factor e Virtual XI. Nada de The Number of The Beast, Powerslave, Seventh Son of a Seventh Son (1988) ou Fear of The Dark (1992), o ultimo antes da saída de Dickinson. Muito menos da carreira solo e nem do Wolfsbane, grupo do qual fazia parte antes de ser escolhido como substituto de Bruce Dickinson.






Acompanhado da banda Absolva (de Manchester, Inglaterra), Bayley mostrou-se distante da parafernália espetacular que costuma acompanhar o Iron Maiden, banda que se especializou em tocar em arenas e mega festivais. Na apresentação em Brasília, nada de cenários suntuosos, nem a gigante mascote Eddie, muito menos salvas de canhão e labaredas, como costumamos presenciar nos shows do Maiden. Produção low cost total. Quem estava na área lounge da casa via Blaze e os caras da banda passando tranquilamente. O show é o homem, presença e aquela voz grave e dramática.

Blaze Bayley & Absolva

Absolva (UK)
A Absolva tocou na abertura e, para surpresa de muitos, os músicos Chris Appleton (guitarra), Luke Appleton (guitarra), Karl Schramm (baixo) e Martin McNee (bateria) eram os mesmos que subiriam ao palco em seguida, para escoltar Blaze Bayley.


Quando surge no palco, Bayley veste uma camiseta da seleção brasileira de futebol. Algo que chama a atenção, ainda mais nessa época de apropriação indébita desses símbolos. Ali nenhuma mensagem subliminar de apoio a uma situação, mais aquela reverência ao Brasil, ao ponto de dizer publicamente que o país é sua segunda casa. Aqui ele é sempre bem acolhido.


Com a humildade que lhe é peculiar, Bayley inúmeras vezes agradeceu a oportunidade e falou para a plateia o quanto considera especial o carinho dos fãs, que compram ingresso, os cds e o merchandising disponível e permitem que ele realize seu trabalho. Em 2020, do jeito que se consome música no planeta, Blaze segue trilhando o próprio caminho. Não pertence a gravadoras, mantém-se independente, não tem vida fácil, é o operário em busca do salário. É uma das vozes mais expressivas do heavy metal e tem como handicap o repertório do Iron Maiden a seu favor.



Aliás, Bruce Dickinson canta as canções top 20, top 10, top 5 do Iron. Não por acaso ele assina muitas das composições, apesar de o principal compositor do grupo se chamar Steve Harris, o fundador do Maiden. Blaze Bayley brilha naquelas que lhe compete, as faixas de The X Factor (1996) e Virtual XI (1998). Caso de Futureal (Harris/ Bayley), Man On The Edge (Bayley/ Gers), Como Estais Amigos (sic) (Gers/ Bayley) e The Clansman (Harris). A dramaticidade interpretativa nessa última, com o poderoso refrão; “Freedom!”, chama-se arte, brothers and sisters!

The Clansman
“I am a doctor. Yes, I am. A doctor of heavy metal. If you have problems with heavy metal, maybe I can help you”.



Com essa frase, Bayley encerrou a apresentação em 18 de janeiro de 2020, no Toinha Brasil Show, em Brasília. Foi a senha para mandar um cover de “Doctor Doctor”, original da banda britânica UFO (por coincidência, tem data reservada no mesmo espaço em 9 de maio). O Iron Maiden, com Blaze Bayley nos vocais, lançou versão desse sucesso, no boxset Eddie’s Archive (2002).

Raridades: Boxset Eddie's Archive (2002)

Long live rock!








domingo, 12 de janeiro de 2020

Sobre Neil Peart

When I heard that he was gone
I felt a shadow across my heart

Nobody's Hero (Rush)

Neil Ellwood Peart (1952-2020)

Ginger Baker (1939-2019)
Quando Ginger Baker (1939-2019), o lendário baterista britânico do Cream, faleceu em outubro de 2019, Neil Peart (1952-2020), o homem das baquetas do Rush, lembrou que todo baterista de rock de uma maneira ou de outra foi influenciado por Ginger, mesmo aqueles que não sabem de quem se trata.


O que dizer agora que Neil, falecido na alvorada de 2020, entra no seleto time de músicos que verdadeiramente se tornaram mitos? Em todo o planeta, quantos músicos (e não músicos) tiveram aquele insight, aquela vontade de rufar os tambores, atacar os pratos e fazer música depois de ver a performance de Peart na bateria?


No DVD Rush In Rio, que registra o encontro do grupo com sua maior plateia, em 23 de novembro de 2002, diante de um lotado estádio do Maracanã, a audiência, extasiada, não cansa de fazer ao grupo, e ao baterista em especial, aquela reverência endereçada aos gênios. Em YYZ, magnífico instrumental forjado no álbum Moving Pictures (1981), a plateia inventou uma vocalise para acompanhar a melodia, certamente uma surpresa para os músicos que há anos faziam do tema espécie de tour de force na qual exibiam habilidade e musicalidade arrebatadoras.


Neste mesmo DVD, no segundo disco que registra a passagem do grupo pelo Brasil, em espécie de documentário, Neil Peart aparece em relance correndo após o show para se refugiar do assédio que certamente receberia daqueles ansiosos por cumprimentar o grupo, sucesso estrondoso de vendas no país desde os anos 1970.

Lifeson, Peart, Lee, ao vivo no Maracanã (2002)
Rush In Rio, 23 de novembro de 2002
O baixista Geddy Lee e o guitarrista Alex Lifeson, sabedores do jeito introspectivo e pouco afeito à bajulação por parte do companheiro de banda, inúmeras vezes contornaram a situação, agindo como relações públicas do grupo, normalmente dando entrevistas, recebendo fãs e convidados nos backstages por onde o Rush passou.

Lee, Lifeson e uma fã

Esse era um dos pontos de realce quando se tratava de ouvir Neil Peart, em função da rotina de atender jornalistas e fãs durante as turnês. Ele simplesmente não falava. Entrevistas ao longo da carreira, talvez sejam poucas considerando os 40 anos de estrada do Rush, que havia anunciado o fim das atividades após a turnê R40, em 2015, justamente quando comemorou quatro décadas de batalha no mundo artístico-musical.


Fatos largamente documentados, Neil Peart evitava de maneira extremamente meticulosa o assédio de estranhos, principalmente depois de tragédias pessoais que marcaram sua vida. Como é sabido, em 1997 e 1998, em espaço de 10 meses, Peart perdeu a filha Selena em um acidente automobilístico e a esposa Jacqueline, que sucumbiu ao câncer.


À época, o baterista relatou aos companheiros de banda e amigos de longa data que poderiam considerá-lo aposentado do show business. Toda a dor do músico e como lidou com essas perdas - saindo sozinho de moto em longas viagens - foram descritos no livro Ghost Rider: Travels on the Healing Road (no Brasil, A Estrada da Cura).



Bem, a essa altura já dá para perceber o quão interessante foi o artista, o músico, a pessoa chamada Neil Peart. Voltando ao segundo disco do DVD Rush In Rio, uma passagem intrigante que recebeu comentários do baixista Geddy Lee diz respeito à devoção dos fãs, principalmente aqueles que absorveram não apenas a música, mas as muitas mensagens contidas nas letras da banda, sob a responsabilidade de Neil Peart. Uma garota dá um sentido depoimento entre lágrimas, lembrando a importância do grupo em sua vida. Geddy, àquela altura um homem maduro de 49 anos, não esconde a surpresa e também o constrangimento ao ver certa idolatria de pessoa tão jovem e entusiasmada com os artistas tão amados, finalmente realizando para milhares o sonho de tocar ao vivo no Brasil.




Voltando a Neil, esse desconforto com o assédio certamente não começou com os trágicos fatos que teve que enfrentar no período 1997/1998. Toda essa carga havia sido incrivelmente descrita em 1981, na canção Limelight (álbum Moving Pictures), que descreve o que é estar na ribalta, ter os holofotes direcionados e milhares de olhos acompanhando cada gesto, expressão e o que mais estiver em foco.

Living in a fisheye lens
Caught in the camera eye
I have no heart to lie
I can’t pretend a stranger 
Is a long-awaited friend

Tradução livre:

Vivendo sob objetiva grande-angular
Capturado por olhos de câmera
Não consigo mentir
Nem posso fingir
Que um estranho
É um amigo que há tanto espero


Em 2017, falando para a revista britânica Classic Rock, no que talvez seja uma de suas últimas entrevistas, Neil é perguntado se ainda é a mesma pessoa que escreveu esses versos. Resposta afirmativa e com um adendo: “Nunca precisei me retratar. Minha habilidade de me expressar cresceu e evoluiu ao longo dos anos. Quando escuto as antigas canções, posso até me envergonhar tecnicamente falando, mas nunca no aspecto psicológico ou emocional. Cada palavra em Limelight continua fazendo sentido, em que pese a crueza com que possa ter sido expressada”.

Como dizia Millôr Fernandes, “sincero como um cara apavorado”.


Ironias a parte, a morte de Neil Peart tem o impacto e comoção mundial que vem se igualar aquelas causadas pelo desaparecimento dos grandes artistas amados pelo público. Foi assim com Elvis Presley, com Keith Moon, com John Lennon, com Freddie Mercury, enfim, com todo aquele que com sua arte cativou admiradores onde quer que se encontre neste planeta.

Led Zeppelin, circa 1971
John 'Bonzo' Bonham (1948-1980)
Em 25 de setembro de 1980, quando foi anunciada a morte de John Bonham, baterista do Led Zeppelin, os fãs ficaram como agora, em estado de choque, não apenas pela perda do ídolo, integrante de uma das bandas mais queridas do mundo do rock. Ali ficava a certeza de que as coisas nunca mais seriam como antes; não haveria mais Led Zeppelin, pelo menos do jeito em que se consagrara a clássica formação a que todos estavam acostumados (Robert Plant, Jimmy Page, John Paul Jones e Bonham).

John Winston Lennon (1940-1980)
A tristeza seria aumentada meses depois, naquele fatídico ano, quando em 8 de dezembro, o mundo foi sacudido com o assassinato de John Lennon. Se alguém tinha esperança em ver os Beatles reunidos novamente, ali a certeza era outra. Foi duro golpe para milhões. Como dito, não era apenas um artista desaparecendo, mas sonhos, visões, anseios, esperanças – principalmente de jovens – esvanecendo com a morte do ídolo.


O mesmo pode ser dito do Rush. Quem acompanha a trajetória do trio canadense sabe que agora o grupo definitivamente acabou. La na frente, quem pode dizer, Geddy Lee e Alex Lifeson podem até voltar a tocar como Rush, utilizando algum baterista como substituto, em alguma homenagem ou coisa parecida. Mas sem Peart, seu talento, carisma e sua incrível polirritmia técnica vai ser difícil de ver. Afinal, o Rush era uma unidade, um trio coeso e criativo que escreveu o nome na história do rock. Ademais, Lee, Lifeson e Peart eram amigos, irmãos de longa data. Como você substitui alguém tão amado na família?

Neil Peart - Subdivisions (Drums only)



neilpeart.net

sábado, 9 de novembro de 2019

Sisters of Mercy, catarse em Brasília

Oh, the Sisters of Mercy
They are not departed or gone
They were waiting for me
When I thought that I just can't go on
And they brought me their comfort
And later they brought me their song
O, I hope you run into them
You who've been traveling so long.

Sisters of Mercy (Leonard Cohen)





Lux Interior (The Cramps): catarse
Rock’n’roll é catarse. Isso não é novidade. A história e seus inúmeros exemplos relacionados confirmam o axioma. Bill Halley, Elvis, Little Richard, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, pioneiros em levar as plateias à loucura foram grandes influenciadores que deixaram marcas. Os Beatles, os Stones, Led Zeppelin, The Who, Pink Floyd, The Cramps, Ramones, cada um ao seu modo, também exerceram essa influência e magnetismo sobre milhões mundo afora.

Everybody's rocking
Todos tocados por esse tal de rock’n’roll.

Observem as várias definições de catarse e as coisas parecem se encaixar. Na etimologia da palavra, é a purificação, a purgação, o alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral. Para os gregos da Antiguidade o que era? Expulsão daquilo que consideravam estranho à essência do ser. Em outras palavras, o que corrompia a pessoa.

Édipo e Antígona, por Louis Duveau
Pelo viés da estética teatral, a purificação do espírito do espectador. É disso que tratam as tragédias. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes foram mestres na manipulação desses sentimentos. A coisa só funcionava se o espectador invariavelmente fosse submetido à purificação das emoções e paixões. Eis a fórmula: terror (phobos) + piedade (eleos) = catarse (katharsis).

Na medicina, catarse é a evacuação do intestino. Ok. Na psicanálise, aquele procedimento de tratar neuroses, trazendo à consciência do paciente coisas inculcadas no inconsciente. Na psicologia, a liberação de emoções ou tensões reprimidas. Para encurtar, aquele efeito libertador dos medos e da raiva.

De onde saiu tudo isso, sabichão? (Dicionário) Houaiss, velho de guerra, sempre nos ensina alguma coisa. Como isso se conecta com o rock’n’roll? Bem, isso não está nos dicionários, mas não é difícil aduzir que todo aquele educado a base da história do rock, todo aquele que já ouviu muito som, que curtiu a discografia dos artistas acima relacionados, que, de alguma forma, teve coração e mente tocados pelo espírito da coisa, esse sabe a resposta.

Mas o canto é menor que vida de qualquer pessoa, dizia Belchior. Assim, saber a resposta nada significa. Por ora, deixemos de lado a contradição e vamos focar no rock com sentido catártico, de expiação e celebração, ou o contrário, depende do ponto de vista. E aí chegamos à banda britânica The Sisters of Mercy, em rara digressão pelo país, no final desse 2019.



Sisters passaram por Brasília. Aqui não vinham fazia 29 anos (!). A banda liderada pelo enigmático cantor Andrew Eldritch tocou no Toinha Brasil Show, casa especializada em rock na capital federal. Olha, quem testemunhou, viu que não foi mero exercício de nostalgia, levando em conta que o auge de sucessos do grupo se deu na segunda metade dos anos 1980.

The Sisters of Mercy @ Toinha Brasil Show, Brasília, 07/11/2019
Mesmo sem provocar exatamente o terror e a piedade (mercy), os Sisters levaram à catarse os quer aceitaram se entregar ao ritual de música, luz e escuridão. O Toinha virou teatro de sombras. Do palco emanava o comando para que os esqueletos sacudissem os invólucros que muitos teimam chamar de corpos.

The Secret Society @ Toinha Brasil Show, Brasília, 07/11/2019
Antes, porém, convêm destacar que a noite foi de rodada dupla. A banda The Secret Society, direto de Curitiba, abriu os trabalhos, entregando cargas de mistério e imaginação debaixo de um impactante rock pesado como há muito não se ouvia.


O trio composto pelo baixista e cantor Guto Diaz, o baterista Orlando Custódio e o guitarrista Fabiano Cavassin apresentaram repertório autoral, músicas contidas no álbum Rites of Fire. Não poderia ter sido escolha melhor como banda de abertura.


Basta dizer que o som desses caras ora lembra Rush, ora Pink Floyd, mas não qualquer Rush ou imitação de PF. Digamos que parecia um Rush turbinado ou um Floyd cheio de testosterona. Melodias prog metal muito bem construídas e executadas por um entrosado power trio com um quê de virtuosismo e forte pegada pós-punk.


Ao vivo, a Secret Society sabe tomar a plateia pelo estômago. Como? Pelo estômago. A paulada sonora é daquelas que bate na caixa torácica, irradiando energia por todo o corpo de quem estiver na frente. Esse truque é infalível. Impossível ficar indiferente. Tipo da banda que prende a atenção o tempo todo. Diante do turbilhão sonoro, muitos preferiram ficar estáticos. Os vulneráveis e destemidos, ou seja, os que não estavam nem aí, esses aproveitaram bem, pois caíram na dança. Ficaram extáticos, hahaha.


Como dizia Márcia de Windsor, nota 10 para a Secret Society.

Sisters em som, luz e sombra
Minutos depois, Andrew Eldritch, os guitarristas Dylan Smith e Ben Christo, e Ravey Davey, operador do drum machine Doktor Avalanche, enfim, The Sisters of Mercy ocupam o palco e tem início o tal ritual de música, luz e escuridão.



Eis uma banda singular. Como sabido, Sisters não tem disco de inéditas desde Vision Thing, álbum lançado em 1990. De lá pra cá, fazem jus à honestidade contida nas palavras que estampam seu website: uma banda de rock’n’roll e uma banda pop; uma máquina de groove industrial; [autoproclamados] deuses do amor intelectual; volta-e-meia fazem discos; de vez em quando, turnês.








Ok. The Sisters of Mercy tocam o repertório antigo com a força do som atual. Do material mais antigo, Temple of Love e Alice aparecem com roupa nova. Marian, No Time To Cry, e First, Last & Always, do disco homônimo de 1985, ganham update tonificante. Do disco Vision Thing tocam quase todas: Doctor Jeep é apresentada em simbiose com Detonation Boulevard. Ribbons, More, I Was Wrong, Vision Thing, e Something Fast fazem ver a ênfase nesse que é o último disco de estúdio. O mesmo ocorre com Dominion/Mother Russia, Flood II, Lucretia My Reflection e This Corrosion, que encerra os trabalhos.





Christo e Smith, guitar heroes
Na linha de frente, os guitarristas Ben Christo e Dylan Smith ladeiam Eldritch e fornecem apoio e protagonismo, nos fazendo lembrar que a banda é a unidade, a personalidade do som. Seja em duelo de solos, seja em vocais, a dupla Christo e Smith surge como guitar heroes, contraponto à persona de Eldritch.

Andrew Eldritch





Eldritch e Smith
Mestre de cerimônias, devido à falta de cabelos, este ora encarna uma personagem de teatro kabuki (canto, dança e habilidade), ora dança nas luzes cruzadas (uma grande sacada cênica), ora ginga as pernas como um Elvis do futuro. Ou seja: Eldritch encarna a história do rock’n’roll, pois nele vemos ainda resquícios de David Bowie e da estética monocromática e temática de Lou Reed e o Velvet Underground.


Alguma violência em vista? Sim, na estética e na poesia, pois não há como fugir desse espectro. Mas aqui tudo é sublimação catártica. Eldritch canta sempre em voz gutural: “I hear the roar of a big machine/ two worlds and in between/ love lost, fire at will/ dum-dum bullets and shoot to kill, I hear/ dive, bombers and/ empire down/ empire down” (Lucretia My Reflection).

Ben Christo e Andrew Eldritch
Ou ainda: “Pink noise, white noise/ and a violet whining sound/ it burns inside this car/ no cops, no signs, no left, no right/ no stops, no turning round/ well, you can run but you can't ride/ you won't get far/ - on Detonation Boulevard/ - bang bang” (Detonation Boulevard)


Rock é cultura, brothers & sisters. E (ainda) liberta corações e mentes.






The Secret Society