quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Richard Feynman: "Inútil, definitivamente inútil"

“Nada existe senão átomos e vazio, tudo mais é opinião”. Demócrito c. 460-370 a.C.

“It’s all really there, the inconceivable nature of nature”. Richard Phillips Feynman (1918-1988)

Richard Feynman, "diamond in the rough"
E por falar em física de partículas, isto é, a que lida com a estrutura atômica da matéria, poucos curtiram tanto as impossibilidades aparentes e as sugestões incompreensíveis da mecânica quântica quanto o físico norte-americano, grande tocador de bongôs e figuraça Richard Feynman (1918-1988).

Playing bongos like ringing the bell
Curtiram porque não bastou elaborar as teorias mais complicadas e inacreditáveis, Feynman extrapolou o senso comum, como só fazem os artistas, ao adicionar, além de inteligência acima da média, uma personalidade excêntrica a todo esse contexto da Física enquanto ciência superior.

Sin-Itiro Tomonaga
Julian Schwinger
Nascido em Manhattan, mas criado junto ao mar, em Far Rockaway, Queens, New York, Richard Phillips Feynman ganhou o Prêmio Nobel de Física, em 1965, juntamente com os cientistas Sin-Itiro Tomonaga (1906-1979), e Julian Schwinger (1918-1994), pelo trabalho em eletrodinâmica quântica, no escopo do entendimento da física de partículas elementares.

O homem que virou selo
Se a presunção não for grande, grosso modo, digamos que a eletrodinâmica quântica estuda a radiação eletromagnética e a maneira como ela interage com as partículas eletricamente carregadas. Dizem que os cálculos dessa teoria chegam a ter acerto com dados experimentais na proporção de uma parte em um bilhão, fazendo com que seja a teoria mais precisa de toda a física.

Diagramas de Feynman
Em 1959, em uma famosa palestra, intitulada “There’s Plenty of Room at the Bottom”, Feynman predisse que a nanotecnologia seria uma realidade. Em suas palavras, seria possível escrever a Enciclopédia Britânica e seu conjunto de livros em uma cabeça de alfinete. À época, a humanidade estava vendo, estupefata, que era possível manipular a matéria em nível atômico. Na verdade, isso já vinha sendo feito há um certo tempo. Hoje, tudo é nano, caro Watson.


“The head of a pin is a sixteenth of an inch across. If you magnify it by 25,000 diameters, the area of the head of the pin is then equal to the area of all the pages of the Encyclopaedia Brittanica. Therefore, all it is necessary to do is to reduce in size all the writing in the Encyclopaedia by 25,000 times. Is that possible? The resolving power of the eye is about 1/120 of an inch---that is roughly the diameter of one of the little dots on the fine half-tone reproductions in the Encyclopaedia. This, when you demagnify it by 25,000 times, is still 80 angstroms in diameter---32 atoms across, in an ordinary metal. In other words, one of those dots still would contain in its area 1,000 atoms. So, each dot can easily be adjusted in size as required by the photoengraving, and there is no question that there is enough room on the head of a pin to put all of the Encyclopaedia Brittanica”.


Explosão da Challenger, em 28/01/1986
Impossível não comentar que Feynman fez parte do famoso Projeto Manhattan, aquele que culminou na criação das bombas atômicas usadas na II Guerra Mundial. Sua sabedoria e expertise também o levariam a ser escolhido pelo governo norte-americano para liderar grupo de trabalho criado para estudar o porquê do acidente com o ônibus espacial Challenger, em 1986. A nave explodiu poucos minutos depois de lançada, devido ao vazamento de combustível. Todos os astronautas morreram nesse episódio.

O jovem Feynman e Robert Oppenheimer, em Los Alamos
Aliás, quando da temporada em Los Alamos, junto a figuras como Robert Oppenheimer, e as coisas top secret envolvendo os estudos das bombas atômicas, o irreverente Feynman começou a achar tudo muito chato. Não deu outra, por brincadeira começou a desvendar os segredos de cadeados e gavetas fechadas. Os colegas cientistas chegaram a achar que havia um espião no pedaço. O próprio contando essas façanhas é algo completamente surreal.


Feynman e Arline viraram filme, em 1996, com Matthew Broderick e Patricia Arquette
Por último, mas não o mais importante, Richard Feynman teve dolorosa experiência pessoal, com o falecimento da primeira esposa Arline Greenbaum, em julho de 1945, em Albuquerque. Um mês após, presencia a explosão da primeira bomba atômica, em teste realizado no deserto de New Mexico. Sobre esse fato, comentou: “fui o único ser humano a ver a explosão a olho nu; os demais usavam óculos escuros”. Do entusiasmo à decepção: a segunda vez seria sobre o Japão.

No Rio de Janeiro, em 1952. Feynman é o quinto na fileira da direita
Com colegas do CBPF. Feynman é o sexto (e-d), na fileira de baixo
Encerrada a apresentação, passemos ao que aqui interessa, a estranha ligação que Feynman teve com o Brasil. Isso, uma das mentes mais brilhantes do século XX, Prêmio Nobel de Física, pai da nanotecnologia, figura proeminente do Instituto de Tecnologia da California (Caltech), professor destacado em Princeton e Cornell, e mestre em quebrar segredos de cofres, Richard Feynman morou no Rio de Janeiro no início dos anos 1950, tendo lecionado no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


O que se sucede está farta e saborosamente descrito no capítulo “O americano, outra vez!” (assim, em português e com exclamação), do livro “Surely You’re Joking, Mr Feynman” (no Brasil, “O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman! – As Estranhas Aventuras de Um Físico Excêntrico” [Ed. Campus], e “Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman” [Ed. UnB]; em Portugal, “Está a Brincar, Sr. Feynman!”).

A obra foi criada pelo amigo Ralph Leighton, camarada de tambores de Feynman, e filho Robert Leighton, colega na Caltech. Trata-se de depoimentos gravados em fitas ao longo de várias sessões de batucadas e depois compiladas por Ralph Leighton.

O título alude a um dia, quando o jovem Feynman – um cara não muito refinado, digamos – chega para estudar em Princeton, (“uma imitação de Oxford e Cambridge, incluindo o forçado sotaque britânico”), e é recebido com pompa e formalismo. No chá com o decano, a esposa deste pergunta a Feynman: “O senhor gostaria de chá com creme ou limão?”. Feynman: “os dois, obrigado”. E a mulher do decano: “Ah, ah, ah. Certamente o senhor está brincando, Sr. Feynman”.


Como chegou ao Brasil? Aparentemente a primeira dica de que deveria dar um rolê por essas bandas veio do inacreditável conselho de um cara para quem deu carona, quando lecionava na Cornell University, em Ithaca (New York). O sujeito falou: vá para a América do Sul, lá é tudo de bom. Feynman gostou e decidiu ter aulas de espanhol. Mas quando foi se matricular, viu uma gatona (no original: “a pneumatic blonde”, melhor traduzindo: uma louraça rechonchuda) se dirigindo para as aulas de português. Não teve dúvida, pôs-se na fila atrás da moça. O pudor anglo-saxão, no entanto, falou mais alto e debaixo de muito arrependimento, nosso herói foi aprender espanhol.

Na Espanha, "Esta Usted de Broma Sr Feynman!"

Em seguida, num encontro de físicos em New York, Feynman sentou-se ao lado do físico nuclear brasileiro Jayme Tiomno (1920-2011). Este pergunta a Feynman: “O que você vai fazer no verão?”. Feynman: “Estou pensando em visitar a América do Sul”. Tiomno: “Por que você não visita o Brasil? Posso lhe conseguir um lugar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas”.

Feynman vestido de diabo, no Carnaval de 1952
Assim, em 1951, Richard Feynman passa umas semanas muito loucas no Rio de Janeiro, como professor visitante. Uma luta constante com a língua é o que se sucede. Imaginem ensinar física quântica em inglês para falantes de português. Ou o contrário: Feynman tentando ensinar física quântica em português ziriguidum.

Hotel Miramar, no Posto 5, Copacabana
Feynman gosta tanto da experiência que resolve retornar ao Rio menos de um ano depois, desta vez para lecionar na Universidade do Rio de Janeiro (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Sortudo, foi morar no Hotel Miramar, na Avenida Atlântica (Copacabana), ocupando um quarto no décimo-terceiro andar, “de onde podia ver o mar e as garotas na praia”, óbvio.

Sua Excelência, o pandeiro
Cair no samba foi um passo. Feynman tinha falado para alguém na Embaixada Americana que gostava da música brasileira. Recebeu convite para ir a um ensaio de um pequeno grupo em um apartamento e caiu de amores por um pandeiro. Na verdade, ficou intrigado com a maneira como um cara tocava o instrumento.


Pronto, o americano passou a frequentar ensaios nos becos do bairro e virou integrante do bloco Os Farsantes de Copacabana (Fakers From Copacabana). Enturmado, seu instrumento passou a ser uma frigideira. Em certo ensaio, uns sessenta integrantes batucando, o mestre da bateria manda parar tudo. Tem algo errado com a frigideira. Fala o cara, um típico big black carioca guy: “O americano, outra vez!” (“The American again!”).

Intimidado? Nada. Feynman praticou e praticou e praticou. Tocou frigideira em festinha particular e acabou virando referência no bloco: “I became a rather successful frigideira player”. Com o Carnaval de 1952 pegando fogo, Feynman foi às alturas quando desfilou com o bloco pelas ruas de Copacabana, naquele cenário conhecido até hoje: aparece gente de tudo quanto é lado, todo mundo corre para as janelas dos prédios, para o trânsito, até a polícia aparece para organizar o desfile, todo mundo feliz, tudo muito informal, the Brazilian way of life, you know what I mean.


Umas pessoas da embaixada viram o americano todo entrosado no meio da multidão e resolveram mandar um bilhete, dando entender que o professor estaria ajudando nas relações bilaterais Brasil-Estados Unidos, ora vejam. Naquele carnaval, um dos melhores tocadores de frigideira foi o mestre da física quântica, Sr. Richard Feynman, now master of the frying pan!

Esse período no Rio, Feynman o descreve com muito carinho. Mas como não veio só para se divertir, guardou na lembrança algo muito estranho, e que depois descreveu no livro, a maneira como os estudantes brasileiros aprendiam as coisas. Melhor dizendo, que diabo de ensino é esse que se desenvolve neste país chamado Brasil?

Montaigne perdeu os cabelos com o estilo decoreba
Feynman se deparou com o terrível estilo decoreba, algo que já tinha feito muitos anos atrás o filósofo Michel de Montaigne perder os cabelos. No curso sobre eletricidade e magnetismo, repleto de equações de Maxwell, Feynman ficou intrigado:


“Descobri um fenômeno muito estranho: eu podia fazer uma pergunta e os alunos respondiam imediatamente. Mas quando eu fizesse a pergunta de novo – o mesmo assunto e a mesma pergunta, até onde eu conseguia –, eles simplesmente não conseguiam responder! Por exemplo, uma vez eu estava falando sobre luz polarizada e dei a eles alguns filmes polaróide. 

O polaróide só passa luz cujo vetor elétrico esteja em uma determinada direção; então expliquei como se pode dizer em qual direção a luz está polarizada, baseando-se em se o polaróide é escuro ou claro. 

Primeiro pegamos duas filas de polaróide e giramos até que elas deixassem passar a maior parte da luz. A partir disso, podíamos dizer que as duas fitas estavam admitindo a luz polarizada na mesma direção – o que passou por um pedaço de polaróide também poderia passar pelo outro. Mas, então, perguntei como se poderia dizer a direção absoluta da polarização a partir de um único polaróide. 

Eles não faziam a menor idéia. 

Eu sabia que havia um pouco de ingenuidade; então dei uma pista: “Olhe a luz refletida da baía lá fora”. 

Ninguém disse nada. 

Então eu disse: “Vocês já ouviram falar do Ângulo de Brewster?” 

– Sim, senhor! O Ângulo de Brewster é o ângulo no qual a luz refletida de um meio com um índice de refração é completamente polarizada. 

– E em que direção a luz é polarizada quando é refletida? 

– A luz é polarizada perpendicular ao plano de reflexão, senhor. 
Mesmo hoje em dia, eu tenho de pensar; eles sabiam fácil! Eles sabiam até a tangente do ângulo igual ao índice! Eu disse: “Bem?” 

Nada ainda. Eles tinham simplesmente me dito que a luz refletida de um meio com um índice, tal como a baía lá fora, era polarizada: eles tinham me dito até em qual direção ela estava polarizada. 

Eu disse: “Olhem a baía lá fora, pelo polaróide. Agora virem o polaróide”. 

– “Ah! Está polarizada”!, eles disseram. 

Depois de muita investigação, finalmente descobri que os estudantes tinham decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer. Quando eles ouviram “luz que é refletida de um meio com um índice”, eles não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que a “direção da luz” é a direção na qual você vê alguma coisa quando está olhando, e assim por diante. 

Tudo estava totalmente decorado, mas nada havia sido traduzido em palavras que fizessem sentido. Assim, se eu perguntasse: “O que é o Ângulo de Brewster?”, eu estava entrando no computador com a senha correta. Mas se eu digo: “Observe a água”, nada acontece – eles não têm nada sob o comando “Observe a água”. 

Depois participei de uma palestra na faculdade de engenharia. A palestra foi assim: “Dois corpos… são considerados equivalentes… se torques iguais… produzirem… aceleração igual. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual”. 

Os estudantes estavam todos sentados lá fazendo anotações e, quando o professor repetia a frase, checavam para ter certeza de que haviam anotado certo. Então eles anotavam a próxima frase, e a outra, e a outra. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre objetos com o mesmo momento de inércia e era difícil descobrir isso. 

Eu não conseguia ver como eles aprenderiam qualquer coisa daquilo. Ele estava falando sobre momentos de inércia, mas não se discutia quão difícil é empurrar uma porta para abrir quando se coloca muito peso do lado de fora, em comparação quando você coloca perto da dobradiça – nada! 

Depois da palestra, falei com um estudante: “Vocês fizeram uma porção de anotações – o que vão fazer com elas?”.

– Ah, nós as estudamos, ele diz. Nós teremos uma prova. 

– E como vai ser a prova? 

– Muito fácil. Eu posso dizer agora uma das questões. Ele olha em seu caderno e diz: “Quando dois corpos são equivalentes?”. E a resposta é: “Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual”. Então, você vê, eles podiam passar nas provas, “aprender” essa coisa toda e não saber nada, exceto o que eles tinham decorado”.


Não vamos estragar a leitura de quem pensa em ir atrás do livro e nem alongar demais tudo isso, mas fica aqui o registro de que Feynman faz uma análise crítica das mais contundentes sobre o ensino brasileiro, por tabela o nosso jeito brasileiro, nossa cultura brasileira, no que tange nossa “estranha forma de pensar”, “essa forma esquisita de auto propagar a ‘educação’, que é inútil, definitivamente inútil”. Estamos falando de 1952. O grifo é deste redator.

domingo, 25 de outubro de 2015

A nuvem

Nuvens sobre o Lago Paranoá, Brasília (DF)
Brasília, I love you but you're bringing me down. Now that the rain's back and the long dry, hot season is gone this year, I have something to tell you.

It is from our pal Percy Bysshe Shelley.

Percy Bysshe Shelley

It is called "The Cloud".

I bring fresh showers for the thirsting flowers,
         From the seas and the streams;
I bear light shade for the leaves when laid
         In their noonday dreams.
From my wings are shaken the dews that waken
         The sweet buds every one,
When rocked to rest on their mother's breast,
         As she dances about the sun.
I wield the flail of the lashing hail,
         And whiten the green plains under,
And then again I dissolve it in rain,
         And laugh as I pass in thunder.

   I sift the snow on the mountains below,
         And their great pines groan aghast;
And all the night 'tis my pillow white,
         While I sleep in the arms of the blast.
Sublime on the towers of my skiey bowers,
         Lightning my pilot sits;
In a cavern under is fettered the thunder,
         It struggles and howls at fits;
Over earth and ocean, with gentle motion,
         This pilot is guiding me,
Lured by the love of the genii that move
         In the depths of the purple sea;
Over the rills, and the crags, and the hills,
         Over the lakes and the plains,
Wherever he dream, under mountain or stream,
         The Spirit he loves remains;
And I all the while bask in Heaven's blue smile,
         Whilst he is dissolving in rains.

The sanguine Sunrise, with his meteor eyes,
         And his burning plumes outspread,
Leaps on the back of my sailing rack,
         When the morning star shines dead;
As on the jag of a mountain crag,
         Which an earthquake rocks and swings,
An eagle alit one moment may sit
         In the light of its golden wings.
And when Sunset may breathe, from the lit sea beneath,
         Its ardours of rest and of love,
And the crimson pall of eve may fall
         From the depth of Heaven above,
With wings folded I rest, on mine aëry nest,
         As still as a brooding dove.

That orbèd maiden with white fire laden,
         Whom mortals call the Moon,
Glides glimmering o'er my fleece-like floor,
         By the midnight breezes strewn;
And wherever the beat of her unseen feet,
         Which only the angels hear,
May have broken the woof of my tent's thin roof,
         The stars peep behind her and peer;
And I laugh to see them whirl and flee,
         Like a swarm of golden bees,
When I widen the rent in my wind-built tent,
         Till calm the rivers, lakes, and seas,
Like strips of the sky fallen through me on high,
         Are each paved with the moon and these.

I bind the Sun's throne with a burning zone,
         And the Moon's with a girdle of pearl;
The volcanoes are dim, and the stars reel and swim,
         When the whirlwinds my banner unfurl.
From cape to cape, with a bridge-like shape,
         Over a torrent sea,
Sunbeam-proof, I hang like a roof,
         The mountains its columns be.
The triumphal arch through which I march
         With hurricane, fire, and snow,
When the Powers of the air are chained to my chair,
         Is the million-coloured bow;
The sphere-fire above its soft colours wove,
         While the moist Earth was laughing below.

I am the daughter of Earth and Water,
         And the nursling of the Sky;
I pass through the pores of the ocean and shores;
         I change, but I cannot die.
For after the rain when with never a stain
         The pavilion of Heaven is bare,
And the winds and sunbeams with their convex gleams
         Build up the blue dome of air,
I silently laugh at my own cenotaph,
         And out of the caverns of rain,
Like a child from the womb, like a ghost from the tomb,
         I arise and unbuild it again.


Bsb in the rain
Rain o'er me.



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Circo de Horrores


Na Folha SP de hoje.

Anderson Ponty Band


Amantes do rock progressivo, Yes, Jean-Luc Ponty, por essa vocês não esperavam. Jon Anderson, praticamente o único soprano-contralto de toda a história do rock, eterno vocal do Yes, grande instituição prog, juntou forças ao lendário violinista francês Jean-Luc Ponty.


O resultado é a Anderson Ponty Band, cujo disco, apropriadamente intitulado "Better Late Than Never" (Antes Tarde do que Nunca) saiu há pouco e vale a pena correr atrás. A junção dos estilos rock progressivo e jazz-rock ficou perfeita; afinal, competência e alta musicalidade à dupla não é problema.

Jon Anderson
Assim como não é problema que o repertório se valha de coisas conhecidas, tanto do Yes quanto de Jean-Luc Ponty. A APB recria com maestria clássicos como "Owner of The Lonely Heart", "And You And I", "Roundabout"; transforma em reggae "Time and a Word"; e faz de "Wonderous Stories" uma bela balada (já era assim, ficou mais bacana ainda). Da mesma a forma, é uma baita surpresa ouvir Jon Anderson cantando "Infinite Mirage", originalmente um tema instrumental de Ponty.

Jean-Luc Ponty
Mérito seja dado aos músicos que compõem a Anderson Ponty Band. Na verdade, caras que acompanham Jean-Luc faz uma data: Jamie Glaser (guitarra), Baron Browne (baixo) e Rayford Griffin (bateria) garantem a altíssima qualidade musical da empreitada.

Após uma série de problemas de saúde de Jon Anderson, a turma inicia neste mês de outubro turnê pelos Estados Unidos. Se dermos sorte, em 2016, quem sabe, não teremos o privilégio de ver essas lendas em ação por essas bandas.

Saibam mais: Anderson Ponty Band



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Com açúcar, com afeto

Yeah, go ahead.

Com o atraso que é peculiar a este espaço, segue comentário a respeito de entrevista feita pelo jornal Valor Econômico com a cantora Fernanda Takai, do Pato Fu, e que também tem carreira solo interessante longe do grupo. O esquema é conhecido: o jornal escolhe uma personagem e leva o (a) entrevistado (a) a um restaurante, boteco, o que seja e a conversa flui entre garfadas e bebidas, não necessariamente alcoólicas.

A série “À Mesa com o Valor”, publicada semanalmente no suplemento “Eu & Fim de Semana”, virou até livro lançado ela editora Apicuri. Personalidades tão díspares como Antonio Delfim Neto, Hermeto Pascoal, Ruy Castro, Gal Costa, Zeca Pagodinho, Fábio de Melo, Fernando Henrique Cardoso, e Fernando Adrià deram opiniões e foram questionados sobre os mais diversos assuntos, não necessariamente sobre economia.

Você pode até dizer que eu estou por fora, ou que estou inventando, e que o jornal está a serviço do neoliberalismo conservador. Claro, quase sempre os entrevistados são chiques, os restaurantes, idem, e os pratos, caríssimos. A questão não é essa. Quem admira o jornalismo e as coisas feitas com competência, percebe o valor de uma entrevista bem conduzida.


Fernanda Takai foi entrevistada em Brasília pelo jornalista Juliano Basile, quando esteve na capital para shows de divulgação de seu trabalho-solo mais recente, o disco “Na Medida do Impossível”. Dentre as informações sobre a carreira, solo e com o grupo, chama a atenção as declarações da cantora sobra a presidente Dilma Rousseff.


Numa época de ódio extremado em que a figura do presidente da República recebe tratamento pior do que cocô de cavalo de bandido, chega a ser audacioso, corajoso, alguém dizer em público: “Eu tenho muito carinho por ela, de antes de ela ser presidente.... Mas nunca tive um momento com ela”.


O texto da entrevista, aliás, começa assim: “Cantora preferida de Dilma Rousseff, Fernanda Takai viajou a Brasília e, mais uma vez, não se encontrou com a presidente da República”. Seguem informações sobre a “amizade” entre as duas, aparentemente iniciada quando Dilma era ministra-chefe da Casa Civil (governo Lula) “e contou que gostava muito de ouvir as músicas de Fernanda durante as caminhadas matinais”.

Longe de ser ombudsman, advogado do diabo, qualquer coisa assim, vale ressaltar que todo mundo tem direito de ser amigo de todo mundo e ninguém tem nada a ver com isso, exceto o Ministério Público e a Justiça, quando a amizade é investigada e vira caso de polícia.

The girl done good

Elogiar Dilma Rousseff a essa altura do campeonato é que o lance. Este espaço tira o chapéu para Fernanda Takai pela qualidade artística e pela integridade, como artista, de expressar suas opiniões.

Convenhamos, a situação do país é periclitante. A presidente não desfruta de prestígio, enfrenta baixos índices de aprovação e a nação entrou numa espiral paranoica: quer vê-la, sei lá, longe do poder, trancafiada no porão mais sujo e escuro, no inferno mais quente, no planeta mais distante; morta e enterrada em cova não sabida, varrida dos livros de história; lembrada, para sempre, quem sabe, no verbete relacionado à corrupção; enfim, na galeria dos piores dos piores, foto ao lado de Joaquim Silvério dos Reis e dos criminosos mais asquerosos e repugnantes que só a literatura pode conceber.

Foto: Wilton Junior (AE)
Motivos talvez não faltem para que muitos pensem assim. Diante de um Brasil cambaleante, fragilizado e com imensos problemas transbordando, Dilma virou a Geni (“Joga pedra na Geni!/ Joga bosta na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de cuspir!”). Tudo é culpa dela e do governo petista que estraçalhou o país, não é essa a sua crença?

Esquisita
Olha, de fato a presidente é esquisita: se expressa mal, não tem o brilho dos grandes, nem a sapiência dos intelectuais, muito menos pode ser chamada de líder e estadista, palavras que dignificam quem chega a esse mais alto posto. Ela é do PT e o PT é o que de pior existe na política, não é mesmo? O PMDB e o PSDB são o PMDB e o PSDB, não vem ao caso, não é? Para muitos, ela é pior do que o Collor e merece um “impeachment” (pra ontem!), é o que todos dizem.

A questão é a seguinte: Dilma foi eleita, até onde se sabe, pela via democrática do voto, sufrágio universal; obteve maioria, ainda que não esmagadora, em eleições, aparentemente, sem fraudes, se é que existe, de fato, algo assim. A oposição não teve competência para impedir sua recondução ao poder. O placar foi 51% x 49% dos votos? Não é maioria, mas é fato, e nada é mais brutal do que um fato.

Nossos presidentes: Collor, Sarney, Lula, Dilma e FHC
Particularmente, este escriba não nutre simpatia pela presidente. Como a tribuna (por enquanto) é livre, afirmo peremptoriamente: são todos medíocres, uma longa fila de presidentes medíocres; irmãos brasileiros medíocres, “A gente não sabemos escolher presidente”, mas não somos inúteis. Está mais do que provado que governar o Brasil só funciona na base da coalizão, pobres e ricos, Maranhão e São Paulo juntos, só que as coalizões nunca deram certo. E a gente vai tentando.

Peter Lorre, em "M": rito sumário
Goste ou não, Dilma foi eleita. Fato. Foi fraude? Tudo bem, uma vez provada a tese, que venham os ritos do estado democrático de direito e despache os culpados para os devidos lugares, punição de acordo com o tamanho do delito. Acreditar nisso é acreditar em Papai Noel? Ah, sim, você prefere a força, a porrada, o rito sumário, “M, o Vampiro de Düsseldorf”. Estado de exceção, isso deve ser bacana de experimentar, não é?

Se você crê piamente que a saída do país do atoleiro começa com a deposição, já, da presidente, e a ascensão de presidente da Câmara até que venham novas eleições, mas ignora que o Brasil, constitucionalmente, é um Estado dividido em três poderes; responsabilidade de três poderes, e não apenas um a influir na vida da nação, talvez você esteja sendo levado na conversa e vale a pena ponderar.


As atrocidades perpetradas pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário também entram nessa conta. Mas, pra você, que talvez esteja sendo engrupido pela mídia, pelas “vozes das ruas” e pelos apelos gritantes e escandalizados nas redes sociais, a saída é essa, de “Maria vai com as outras”.

Bom é ir pra manifestação, tirar selfie? Tá bom, quando terminar a manifestação, volte para casa, pois a novela vai começar e tem sempre alguém gritando, espumando de ódio: “Eu te odeio, eu te odeio”, eu vou te matar...”.


Não dizem que é preciso ter cuidado com o que desejamos, pois corre-se o risco desse desejo virar realidade? Basta ser sincero e desejar profundo, já dizia o Raul. Tente outra vez.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

One of my heroes: Vinicius de Moraes, 102 anos

Vinicius de Moraes, circa 1938
Este 19 de outubro é aniversário de Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes, o Vinicius de Moraes (1913-1980), um dos maiores entre os maiores, sujeito múltiplo na vida: poeta, compositor, cantor, jornalista, crítico de cinema, diplomata, dramaturgo, boêmio, mulherengo, virtuose da própria tristeza e solidão, e que, como poucos, amou daquela vez (sempre) como se fosse a última.

De Vinicius, o mais o punk entre os emepebistas, já se disse tudo e mais um pouco, o melhor a fazer é folhear um livro seu, ler um poema, ouvir uma canção, tudo funciona como antídoto antimonotonia e é alento contra a mediocridade avassaladora que nos persegue e engolfa. Uma dose diária de Vinicius é a lufada de ar fresco e saudável em meio a esse tempo abafado, doentio e insalubre.

Em Brasília, Vinicius de Moraes escreveu o nome no Livro de Ouro da cidade. No capítulo pós-Gênese, o que trata dos anos, dias pré-inauguração, está lá o Poetinha sorvendo seu uísque e cigarro e testemunhando o prego a prego, tijolo por tijolo, cimento e ferro brotando do barro vermelho do Cerrado brasileiro.

Tom e Vinicius, aventura épica, em 1959
Em 1959, fato contado e recontado, Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim pegaram um Fusca e, sabe-se lá como, rodaram uma distância épica, por estradas precárias, do Rio de Janeiro a Brasília, então um canteiro de obras. Motivo da nobre visita: passar dez dias, como hóspedes, no Palácio do Catetinho, o “palácio de tábuas”, a pretexto de aqui sentir o clima e compor, mediante encomenda oficial, a Sinfonia da Alvorada, peça para orquestra e luzes, que deveria ser apresentada na Praça dos Três Poderes, na inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.

Deveria, pois, apesar de terem completado a tarefa, o espetáculo de “son et lumière”, acabou substituído. Consta que a empresa francesa Clemançon, responsável pela montagem, acabou, por diversos motivos, não entregando o prometido.







A inauguração, que durou três dias, teve, no dia 21 de abril, recepção no Palácio do Planalto, oferecida pelo presidente Juscelino Kubitschek; em 22 de abril, “concerto-sinfônico-coral” de música brasileira sob regência do maestro Eleazar de Carvalho; e no dia seguinte, o programa foi o “Festival de Brasília: Espetáculo de encerramento dos atos comemorativos da Nova Capital, de autoria do Acadêmico Josué Montello”. Música de Heitor Villa-Lobos e Heckel Tavares, sob direção de Chianca de Garcia.

Tom e Vinicius no olha d'água do Catetinho
Os dias no Catetinho renderam relatos e boas lembranças de Vinicius e Tom. O olho d’água, aos fundos do lugar, serviu de inspiração para “Água de Beber”. No anedotário, consta que Tom e Vinicius foram ao regato, atraídos pelo barulho da água corrente. Ao perguntarem a um capataz se aquela água era potável, ouviram a frase: “É água de beber, camará (camarada)”. Daí surgiram os famosos versos, que viraram até “Water To Drink”, quando a letra ganhou versão em inglês por Norman Gimbel.


Escreveu o Poetinha: “Dez dias ficamos assim no ‘Catetinho’, neste dolce far niente de fazer uma sinfonia, com sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar como íamos de trabalho. De vez em quando dávamos um pulo à cidade para ver os amigos Oscar Niemeyer, José (Juca) Ferreira de Castro Chaves, João Milton Prates, os bravos pioneiros de Brasília, os homens que, com o Presidente Kubitschek, primeiro puseram os pés no planalto. João Milton Prates, herói da FAB, antigo piloto e amigo de JK, grande e bom amigo nosso, esse vinha sempre nos ver, com vitualhas e licores, e tomava pela obra em progresso um interesse quase criador. Um dia exibiu-nos, de sua carteira, a histórica promissória de quinhentos contos, firmada por ele e Niemeyer, com a qual puderam erguer em dez dias o incomparável ‘Catetinho’. Ao grande Presidente e a todos esses homens, que não têm frio nos olhos, mas cujos olhos se umedeceram ao ouvirem pela primeira vez ao piano os temas iniciais da ‘Sinfonia da Alvorada’, a nossa comovida gratidão, não só pela confiança que tiveram em nós, como pelo exemplo que nos deram de ânimo, modéstia e espírito de luta”.


O relato de Antonio Carlos Jobim: “Setembro, sertão no estio. Frio seco. Altitude aproximada: 1.200 metros. Ar transparente, céu azul profundo, primavera e pássaros se namorando. Campos gerais, chapadões dos gerais. Cerrado e estirões de mata à beira dos rios. Horizonte: 360 graus. No fundo do ‘Catetinho’ há um capão de árvores altas por onde passa um córrego de água boa e fria. Seguindo-se a água sai-se num campo onde fui muitas vezes escutar o pio das perdizes. Silêncio nos campos claros, batidos de sol. De repente, de perto, como um grito, veio o piado do macho chamando a fêmea. Silêncio. E de longe chega a resposta. É uma conversa que parece vir do fundo dos tempos. Aqueles dois pontos de som escondidos no capim se procuram, aproximam-se, encontram-se e cantam juntos. Uma nuvem passa e sua sombra corre pelos campos. O vento faz ondas nos penachos do capim: dourado, verde, dourado…”.


O resto é história e agora saudade, saudade dessa dupla, em que pese as toneladas de críticas bestas a Vinicius, por ser mulherengo, beberrão e tal; e ao Tom por oferecer uma música brasileira para americano ouvir. Os cães ladram e a caravana passa. Parafraseando Ezra Pound: houvesse em nós mais canção, menos temas, então se acabariam minhas penas, meus defeitos sanados em poemas...

Falar nisso, de Vinicius, volta e meia salta um verso, uma estrofe, um poema favorito. O de hoje, chama-se “Elegia Desesperada”, também conhecido como “O Desespero da Piedade”.

Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina 
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam 
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse 
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!