sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

One of my heroes: MCV (1923-2006)


Um dos colossos da poesia feita em Portugal, Mário Cesariny de Vasconcelos soube dar tratamento absurdo à palavra, daí foi rotulado como surrealista, o que explica muita coisa, mas ao mesmo tempo não diz nada.

De seus poemas pescados aqui e acolá, este aqui transcrito atravessa o tempo e o espaço, como neutrino que tudo transpassa e qual fantasma ninguém vê.

Como sempre, para ler em silêncio e meditar caminhando.

O Lornhão Escorreito

O que é o suplício de Tântalo?
É uma luz muito íntima que me aquece à noite.
O que é o suicídio?
É descer lentamente com o vagar de quem sobe.
O que é o amor?
É uma rua muito sossegada onde só se passou uma vez.
O que é muita fome?
É um tinteiro de prata cheio de sangue.
O que é a nobreza?
É o vento vindo dos bosques.
O que é o sonho?
É o simulacro da melancolia.
O que é a coragem?
É uma igreja dentro duma noz.
O que é um Galo?
É uma dilatação na parte posterior da cabeça.
O que é a razão?
É uma carta vinda de longe.
O que é a noite?
É um texto muito antigo entoado por uma multidão de sapos.
O que é o destino?
É o amor a todo o comprimento.
O que é a infância?
É uma ilha que emerge rapidamente.
O que é a pintura?
É um banho turco prolongado.
O que é a monarquia?
É um saco de pedras a pedir que o carreguem.
Quem é a tua mãe?
É um mendigo que espera pela noite para rir.
Quem somos nós?
Os olhos do pássaro morto em viagem.
Que esperamos?
A tua esperança.
O que fazemos?
O dia.
Quem era António Maria Lisboa?
Um oráculo distraído que nunca disse a verdade.
Onde vivia?
Ao colo de uma estátua de farinha.
Por que vivia?
Porque sempre houve quem o quisesse matar.

Mário Cesariny de Vasconcelos
Da obra “Primavera Autónoma das Estradas”.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2016