segunda-feira, 25 de abril de 2016

Do Aborto Elétrico ao Hotel Básico, passando pelo Capital Inicial

Capital Inicial, em São Paulo (1985)
Das bandas de Brasília, a Legião Urbana é talvez a mais festejada, não só pela qualidade musical e poética de seu líder, o saudoso Renato Russo (1960-1996). Mas, conversa sacramentada, o rock de Brasília não é só a Legião. Em verdade, é impossível contar a história do rock brasileiro sem mencionar o que representou, lá nos anos 1980, o movimento musical da capital federal que gerou grupos como a Legião, a Plebe Rude e o Capital Inicial.

Capital Inicial, em Nova Iorque (2015). Foto Rafael Kent
Dos três, o Capital Inicial parece o mais bem-sucedido. A banda foi formada no mesmo caldo de cultura que gerou o famoso grupo de Renato Russo e a gênese de tudo é um certo amor pelo punk rock e atende pelo nome de Aborto Elétrico, grupo do qual fizeram parte, além de Renato, os irmãos Fê e Flávio Lemos, e o guitarrista sul-africano André Pretorius (1961-1988).

Músicas de impacto, como “Que País É Esse?”, “Veraneio Vascaína”, “Baader-Meinhof Blues” e “Música Urbana” surgiram nesses dias em que o país ainda vivia sob o regime militar e, com os novos tempos, a nova década se desenrolando, a juventude de então buscava os catalisadores certos. Já não era Chico, nem Caetano, nem Gil quem espelhavam os anseios da meninada do início dos anos 80. De certa forma, foi a “tchurma” de Brasília que apresentou o pop-rock contemporâneo à juventude brasileira. Questão de linguagem, música e atitude. O resto é história.


Por falar em Capital Inicial, a banda volta à cidade, dia 29 de abril de 2016, no Net Live Brasília, desta vez para mostrar os sons que fazem parte do mais recente projeto intitulado “Acústico NYC”. Gravado em Nova Iorque, como o nome indica, trata-se de projeto que dá a medida do status que o grupo desfruta atualmente. Qual artista pode hoje embarcar para os Estados Unidos e gravar projeto audiovisual assim? Poucos. O Capital Inicial é um deles.

Fê Lemos, baterista do Capital Inicial e gerente do Hotel Básico
Aproveitando a passagem do grupo por Brasília, o Blog do Hektor conversou com o baterista e fundador da banda, Fê Lemos, sobre esse status e o momento artístico em meio a uma realidade que já não é mais a mesma. Melhor dizendo, como sobreviver e continuar vendendo música quando o público, grosso modo, já não quer os produtos físicos tradicionais, tipo CD e DVD? E mais: como se reinventar quando todas as fórmulas possíveis parecem já ter sido testadas e nem é mais o rock que faz a cabeça da meninada?

Fê Lemos
Blog do Hektor – O Capital Inicial é atualmente um dos mais bem-sucedidos grupos do assim chamado BRock. Prova disso é que, do alto dos 35 anos de carreira, a banda aparece com um disco acústico gravado em Nova Iorque. Como você vê esse momento?


Fê Lemos – Eu vejo esse “Acústico NYC” como o encerramento de um ciclo que começou com o “Acústico MTV” (2000), que colocou o Capital nessa rota de sucesso, nos colocou de volta no mercado, trouxe uma legião inteira de novos fãs (os adolescentes da época) e fez renascer nos adultos, que conheceram a banda na juventude nos anos 80, o interesse pela banda. Essa foi uma tempestade perfeita: o disco “Acústico MTV” reuniu os pontos altos de nossa carreira, em um momento em que que esse produto era bem recebido pelo púbico. Foi um tsunami na nossa careira. A partir do Acústico, lançamos outros projetos, como o DVD ao vivo em Brasília; o DVD do Aborto Elétrico, além de discos de estúdio.

Capital Inicial, Acústico MTV (2000)
BH – O “Acústico MTV” foi primeiro projeto do Capital no conjugado produto CD/DVD?

FL – Sim, foi o que abriu as portas. Veio após a reunião da banda, em 1998. Passamos boa parte da década de 90 separados, mas nunca paramos. Tivemos outro cantor, o Murilo Lima, um rapaz de Santos e com ele gravamos dois discos. É importante dizer que o Capital nunca parou com a saída do Dinho Ouro Preto.

BH – Esse período foi meio conturbado para o grupo, não?

Murilo Lima
FL – O projeto com o Murilo, apesar de todo o nosso esforço, não vingou perante o público. Cinco anos após a separação, as condições se mostraram favoráveis a uma reunião. A gente fez nesses quinze anos, além desses projetos especiais, cinco discos de estúdio e eu sentia que a gente precisava no atual momento fazer uma pausa. Não uma licença sabática, não é parar. Eu pensava em uma pausa, no sentido de lançar mais um disco feito da mesma maneira que foram feitos os outros. Nos últimos anos o Dinho Ouro Preto se tornou o principal compositor da banda. Então, eu vou ser sincero: eu não queria mais fazer um disco como a gente vinha fazendo. A própria gravadora e os outros componentes do Capital Inicial viram que a gente precisava fechar esse ciclo de 15 anos, onde foram feitos todos esses discos, diversas novas músicas passaram a fazer parte do repertório do Capital. Seria interessante a gente olhar para trás e ver o que de melhor foi feito nesse período, registrar isso, de alguma forma. E esse projeto amadureceu até chegar no “Acústico NYC”. A gente tem muitos poucos registros ao vivo. Fora o DVD do Multishow, a gente teve o do Rock In Rio, que foi uma coisa dentro do festival, não uma coisa só nossa. Todos esses fatores pesaram para a gente realizar esse projeto. Acho que isso dá uma pausa para novas composições, dá um tempo para a gente voltar com um disco, no qual a gente consiga dar um passo adiante em termos criativos.

BH – Que tipo de repertório o Capital Inicial privilegia atualmente? No “Acústico NYC” vocês abrem mão de coisas conhecidas, como “Veraneio Vascaína”, “Música Urbana”, “Fátima”, “Natasha” e “Independência”. O Aborto Elétrico virou uma coisa distante?

Renato Russo, Fê e Flávio Lemos
FL – Formei o Aborto Elétrico, com o Renato (Russo); o Flavio foi o baixista. Se tem alguém que pode interpretar naturalmente o Aborto somos nós. O Aborto é parte da nossa história, é de onde o Capital surgiu. A gente toca essas músicas com toda a naturalidade e respeito. Mas se a gente tocasse novamente.... Essas músicas foram gravadas no “Acústico MTV”, no DVD do Multishow, apareceram no DVD do Rock In Rio; quer dizer, se tocássemos novamente seria uma quinta gravação dessas músicas. Me parece um pouco excessivo. Era importante para esse projeto focar na produção recente, no pós-“Acústico MTV”, a produção dos últimos quinze anos. No “Acústico MTV” a gente trouxe as músicas do nosso primeiro disco, que são as três músicas do Aborto Elétrico, que o Capital herdou. Músicas em que somos autores: eu e o Flavio, coautores de “Música Urbana”; Flavio, autor de “Fátima” e “Veraneio Vascaína”. Essas três naturalmente passaram a fazer parte do repertório do Capital. Tocá-las novamente, parece fora de propósito.

New York, New York: Fê, Flávio, Yves Passarell e Dinho Ouro Preto
BH – O Capital Inicial economiza nos clássicos? As pessoas vão para o show com a expectativa de ouvir tudo isso, não é verdade?

FL – Sim, vão com essa expectativa. Mas particularmente tenho gostado de fazer um show, onde o núcleo forte é o DVD “Acústico NYC”. No bis a gente mata a vontade das pessoas.

Pré-Legião, pré-Capital: Aborto Elétrico mandando ver em Brasília
BH – Como é a sua ligação com Brasília? A cidade daquela época não é igual a de hoje. Como você enxerga essa passagem do tempo?

Colina, Bloco A. Prédio residencial da Universidade de Brasília
FL – Eu sempre volto a Brasília. Meu pais moram aí, meus melhores amigos estão em Brasília. Eu tenho um amor incondicional por essa cidade. Considero essa a minha cidade-natal, embora tenha nascido no Rio de Janeiro. Mudei para Brasília quando eu nem tinha seis anos de idade. Fui direto para a Colina, meu pai foi lecionar na UnB.

BH – E Brasília naquela época....

Brasília, anos 70

Brasília, anos 70: piscina de ondas
FL – Brasília, nos anos 70, tinha um romantismo, no sentido de que estavam construindo um projeto utópico, uma nova cidade, que favoreceria novas maneiras de interação entre os indivíduos, uma nova maneira de convívio dentro de uma cidade, sem aquelas divisões de bairros, de classes sociais, que existem numa cidade comum. Só que, 30 anos depois, você vê que a cidade cresceu muito. Passamos a ter os problemas das cidades tradicionais em Brasília. A qualidade de vida é muito boa no Plano Piloto e ela diminui, a medida em que se afasta para a periferia. Passamos a ter problemas ambientais, poluição dos rios ao redor de Brasília, o que era um paraíso para nós. Tem rios em que não dá mais para nadar. A transformação do Cerrado em uma grande área agrícola; o cultivo da soja, embora seja economicamente bom, ambientalmente é triste porque significa a destruição de um bioma tão rico, tão especial. Nós amávamos o cerrado, era parte das nossas vidas fazer os acampamentos, ir aos riozinhos, procurar os picos, andar mesmo pelo mato, algo que você não faz mais hoje. Teve aquela coisa de acompanhar o crescimento da cidade, de brincar nas construções, ver a transformação urbana que acontecia, tudo isso foi muito rico para a nossa infância. Isso não existe mais. Hoje a infância em Brasília é muito boa, quando eu a comparo com São Paulo, por exemplo: tem toda uma parte ao ar livre, nas superquadras, nas casas, nos lagos. Brasília mantém isso, mas não como na minha época, que tinha mais mato. Na adolescência, a história do Aborto Elétrico, do punk rock, parecia que a gente havia descoberto um segredo, algo que só nós tínhamos. Estávamos à frente do nosso tempo. Esse sentimento foi muito importante na criação do rock brasiliense, no sentido de você pressionar, ir para frente, criar as músicas, virar compositor, como eu acabei virando letrista; o Flávio e o Loro (Jones), aprendendo a tocar seus instrumentos, se tornando músicos, a própria transformação do Renato (Russo), de um garoto tímido que tocava violão ao redor da fogueira até o que ele virou. Isso foi uma transformação, uma passagem da adolescência para a vida adulta que só poderia ter acontecido em Brasília: com a diversidade de indivíduos que se encontraram na cidade, naquela época. Pessoas vindas de várias partes do Brasil – eu e o Renato viemos do Rio; o André Muller (Plebe Rude), veio do Paraná, mas já tinha morado nos Estados Unidos. O Philippe Seabra também morou muitos anos nos Estados Unidos; todos os diplomatas, pessoal da 8, da 12, que embora tenha tido outra bagagem. Enfim, todo esse caldeirão criou as condições para que houvesse, durante alguns anos, em Brasília, toda aquela efervescência cultural que culminou em dezenas de bandas. As três mais famosas saíram de Brasília e conseguiram dar prosseguimento a uma carreira artística. Essas condições, acho, não existem mais. Brasília está muito parecida agora, em termos sociais, com uma cidade comum. Tivemos um momento especial, em um lugar especial. Isso não se repete frequentemente. A gente abriu um caminho.

BH – As pessoas seguem esse caminho, mas sem a força daqueles que estavam desbravando.

FL – É sempre assim. O que eu gostaria de estar vendo – o que de certa forma acontece – é a renovação. Brasília mostrou que é possível fazer uma música pop original, autêntica, que tem a ver com a vida das pessoas. Gostaria que isso continuasse. Gostaria de ver mais artistas e mais bandas, só que, aí, a gente entra no problema do Brasil. O país estava aberto para o rock naquela época, os anos 80; porém, hoje, o rock é apenas mais um dos elementos da cultura brasileira.

BH – Parece que não é mais o rock que faz a cabeçada meninada.

FL – Não é só em Brasília que isso acontece. É no Brasil todo.

Fê Lemos, man with the sticks
BH – Como baterista há 40 anos, como você se vê com essas baquetas na mão? Como é o seu entendimento da parte percussiva da música? Quais foram suas grandes influências na bateria? Keith Moon (The Who)? Neil Peart (Rush)?

Keith Moon (The Who)
Bill Ward (Black Sabbath)

Ian Paice (Deep Purple)
John Bonham (Led Zeppelin)
Neil Peart (Rush)

FL – Gostava muito do Keith Moon. O The Who foi uma das bandas mais importantes da minha vida, eu ouvia muito quando era adolescente. Ouvi muito rock progressivo: Emerson, Lake & Palmer, Yes, King Crimson; Bill Bruford, baterista extraordinário. Adoro King Crimson. Peguei Black Sabbath, Bill Ward; Deep Purple, Ian Paice, o próprio John Bonham, enfim, toda essa escola dos anos 70. Gostava muito de Grand Funk Railroad. Quando comecei a tocar bateria, logo formei banda. Não fui aquele baterista que entrou no conservatório, para aprender todos os rudimentos, tipo aquele filme “Whiplash”, para me tornar o grande baterista. Não tive essa ambição. Minha ambição foi ter banda. Com 13, 14 anos, já estava tocando na Colina’s Band. Era eu, o Toninho Maia e o Davi Gueiros. A gente ficava fazendo umas jams embaixo do bloco A, da Colina, onde a gente ensaiava. Tocava uns blues, uns temas de heavy metal, que o Toninho Maia inventava na guitarra. Eu curtia tocar com os caras, meus amigos. Com 15 anos, mudei para a Inglaterra. Morei um ano lá, fiz até aulas de bateria em uma escola. Só que eu estava em um nível em que, o que a escola oferecia, era muito básico. O treinamento posterior, que seria entrar no mundo do jazz, os estudos de polirritmia, os estudos avançados de bateria, não era nessa escola que eu faria. Eu também não estava muito interessando nisso, porque eu tinha descoberto o punk rock. Eu estava ouvindo The Stooges, MC5, Sex Pistols, Ramones. Foi com essa bagagem que eu voltei da Inglaterra para o Brasil, em 1978, com a vontade de montar uma banda de punk rock.

BH – Você não queria tocar heavy metal, mas punk rock.

FL – Toda a minha história antes do punk virou um capítulo importante da minha vida, sons que eu adoro, mas não estava mais interessado em tocar que nem o Ian Paice, por exemplo, ou como o Neil Peart, do Rush. Quando formei a banda, minha intenção era criar repertório com o grupo e não ficar estudando os rudimentos e lendo partituras, querendo aprender a tocar jazz-rock, essas coisas. Meu foco não foi no aprendizado formal. Quando acabou o Aborto Elétrico, e formamos o Capital, continuei nesse caminho. Passei a escrever letras, o que virou algo muito importante na minha vida. E como baterista, o que eu queria era tocar com a banda. Não procurei uma educação avançada na bateria. Hoje, 40 anos depois, sim, gostaria de tocar jazz, saber mais, ter domínio de todos os ritmos brasileiros. Tenho um vocabulário limitado na bateria, mas acho que, para aquilo que me propus, fui bem-sucedido: ter uma banda, criar um repertório para ela, ter um estilo de tocar dentro dela.

BH – Você já gravou bateria em outros discos, com outros artistas, tirando o Aborto Elétrico e o Capital?

Carol Mendes e Fê Lemos: Hotel Básico

FL – Não. Nunca fui convidado para participar de nenhum outro disco. Tenho o meu projeto-solo, o Hotel Básico.

BH – Por falar nisso, nesse você prioriza mais a eletrônica do que propriamente o uso da bateria?

FL – Priorizo a criação de canções. Uso o computador como um instrumento de composição, um instrumento harmônico.

BH – Toca teclado?

FL – Estudo piano há um ano e meio. Toco um pouco. Na verdade, meu estudo está meio truncado. Não tenho aquela dedicação de uma hora de estudos todos os dias. Não tenho conseguido fazer isso. Nos quatro anos em que preparei o segundo disco do Hotel Básico, o tempo livre era no estúdio, produzindo as canções, fazendo os arranjos, escolhendo os timbres, a mixagem, a construção da música em si; gosto muito disso, de partir de pequenas células rítmicas ou melódicas e criar uma canção inteira a partir disso. Só que isso leva tempo. Quero tocar piano, mas não quero ser concertista. Isso não tem cabimento a essa altura da minha vida. Mas eu sento ao piano e consigo tocar um blues, o que para mim é uma vitória. Entendo como se formam os acordes, as progressões, as noções de harmonia, isso era algo que eu não tinha. O Hotel Básico vem neste sentido: sou um compositor. O Capital Inicial deixou de ser o único caminho para eu expressar e registrar as minhas ideias musicais. Por isso, criei o Hotel Básico.

Flyer do lançamento do livro "Levadas e Quebradas"
BH – Você tem um trabalho como escritor. Você tem um blog. O blog virou um livro, não foi?

FL – Infelizmente, parei de escrever no blog. O blog virou um livro e desde então, eu parei de blogar. Lá se vão quatro anos. Mas escrevo letras, isso eu não paro de escrever. O disco novo do Hotel Básico tem letras minhas. Tem letras antigas e estou dando os primeiros passos rumo à produção do terceiro disco. Em resumo, tem boas novas letras por aí.

BH – No Capital você escrevia bastante letras, mas a gente vê muita coisa do Dinho e do Alvin L. Você tem muitas coisas guardadas e que se encaixam no perfil da banda?

FL – Na verdade, o Dinho sempre procurou parceiros com quem ele conseguisse produzir. Ele encontrou no Alvin um grande parceiro. O Alvin é uma pessoa extraordinária. Eles já fizeram várias músicas. O que aconteceu em todos esses anos, é que o Dinho passou a procurar fora da banda os parceiros para trabalhar com ele. Agora ele está trabalhando com o Tiago Castanho. Isso é uma particularidade do Dinho, temos que respeitar, pois esta é a forma que ele encontrou para compor e criar. Como ele é o cantor, ele escolhe o que quer cantar, da mesma forma que eu escolho a bateria em que eu quero tocar. Quem traz a canção é ele. Acho que o Capital Inicial dos anos 80 é mais “rico”, porque tinha mais diversidade de compositores. As ideias vinham de vários lados. Eu escrevia, o Dinho escrevia, Bozzo Barreti escrevia; Loro fazia a música; o Flávio fazia a música; Bozzo fazia músicas. Eu cheguei a fazer músicas no começo do meu romance com a música eletrônica. Hoje, o Capital tem só um compositor, que é o Ouro Preto.

BH – No disco Gigante, de 2004, vocês gravaram "Sem Cansar", versão para “C’est Comme Ça”, da banda francesa Les Rita Mitsouko. De quem foi essa ideia?

FL – Foi ideia do Dinho. Ele sempre gostou de procurar músicas para a gente fazer versões. Gosto muito de Les Rita Mitsouko. Na época, o Dinho achava que seria uma coisa legal a gente apresentar essa versão. A gente já tinha feito “O Passageiro” (“The Passenger”, Iggy Pop). Fizemos também “A Sua Maneira”, que é uma versão de uma canção da (banda argentina) Soda Stereo. Mas, repito, isso foi uma coisa do Dinho Ouro Preto, eu prefiro me dedicar às composições próprias.

BH – Vocês fariam um disco só com covers?

FL – No momento, não faria. Não tenho interesse. Talvez o Capital abraçasse um projeto assim. Nós temos muitas covers em nosso repertório. A gente até podia juntar tudo isso em um disco só.

BH – Vocês gravaram até Mutantes, hein?

FL – Sim, é verdade, “2001”, no disco “Todos os Lados”, de 1989. Mas veja: atualmente eu quero é continuar compondo. Essa é a prioridade que o Hotel Básico está me permitindo. Tenho pensado no novo disco. Gostaria que o Hotel Básico ficasse mais conhecido. Gostaria de estar associado a um selo que me ajudasse na divulgação, mas por enquanto estou fazendo tudo sozinho. Trabalho com um canal de distribuição, mas é muito difícil vender disco hoje em dia. As lojas não estão comprando mais.

BH – Ninguém mais quer música em meio físico?

FL – Só o fã. O fã gosta de ter, ele compra. O consumidor aleatório, não. Ele baixa uma música, escuta no Spotify, quando muito, compra no iTunes, nos serviços de streaming.


BH – “Amor Vagabundo” já é segundo disco do Hotel Básico.

FL – Isso. O primeiro foi lançado há dez anos e se chamava “Fê Lemos – Hotel Básico”. Com o passar dos anos, Hotel Básico virou o nome do projeto. Agora tudo é Hotel Básico. Até o email é Hotel Básico, o Twitter é Hotel Básico.

BH – No passado você esteve em uma banda chamada Dona Laura Vai às Compras? Isso foi antes do nome Capital Inicial. É um nome meio difícil para uma banda, concorda?

Capital Inicial com Heloisa nos vocais
FL – Hahaha. Esse é um dos nomes que o Capital Inicial cogitou se chamar um dia. A gente tinha uma lista de nomes possíveis e Dona Laura Vai às Compras era uma das opções. Na verdade, era uma seção que havia no Jornal de Brasília com esse nome. Isso foi só uma piada. A gente pensou em se chamar Os Mercenários, Os Esqueletos do Armário, Dona Laura.... Mas no final, foi Capital Inicial que vingou. O Capital Inicial, com esse nome, começou em meados do primeiro semestre de 1982: eu, Flavio e Loro ensaiando. Quando estávamos compondo as primeiras músicas, a gente não tinha nome. No segundo semestre de 1982 foi que a Heloisa (Teixeira) entrou para a banda. Ensaiamos com ela ao longo do semestre, já se chamando Capital Inicial. Isso durou até o primeiro semestre de 1983, até o show na temporada da ABO, quando tive o acidente com a moto. Daí que a Heloisa saiu e a gente decidiu que era hora de procurar um outro cantor.

BH – E de quem foi a ideia do nome Capital Inicial?

FL – Na época a gente era muito duro, não trabalhávamos, vivíamos de mesada, éramos recém entrados na faculdade. A gente queria investir, comprar equipamentos, amplificadores, microfones, caixas de som e a gente falava que precisava de um capital inicial. Um dia a Maria Inez Laurent, minha namorada, mãe da minha primeira filha falou: “pô, por que vocês não se chamam Capital Inicial?”. A gente ouviu, mas achou horrível. Lembro que, particularmente, eu não gostei e até falei: “O quê? A gente vai se chamar dinheiro? Que horrível!”. Mas o engraçado é que passadas uma ou duas semanas, aquele nome ficava soando na cabeça. Aí ficou. Hahaha.

BH – Outra curiosidade a respeito da banda diz que a letra inicial de “Música Urbana” falava em comer pastel na rodoviária. Procede?

FL – Na primeira versão de “Música Urbana”, a letra dizia: “Fui até a rodoviária comer pastel. As ruas têm cheiro de gasolina e óleo diesel”. Foi o Dinho Ouro Preto que escolheu essa música para entrar no nosso repertório. Mérito dele. Ele procurou o Renato (Russo), para escrever os outros versos: o “Tudo errado, mas tudo bem”. Isso não fazia parte da letra, quando cantava o Renato repetia o primeiro verso. O Dinho achou que isso não tinha nada a ver (“comer pastel na rodoviária”) e tirou essa parte da letra.

Pastelaria Viçosa, Rodoviária de Brasília
BH – Propaganda grátis para a Viçosa (famosa pastelaria popular, na rodoviária central de Brasília).

FL – Hahaha. Eu adoro o pastel da Viçosa. Meu filho de 8 anos adora Brasília e o programa que ele mais gosta é ir na rodoviária, não para comer pastel, mas para ir na banca de gibis antigos, procurar coisas da Turma da Mônica.

BH – Leva ele na Kingdom Comics no Conic.

FL – Isso, vou fazer a turnê completa: rodoviária e Conic.

BH – Quando você vem a Brasília e tem um tempo livre, qual é o programa que mais gosta de fazer na cidade?

FL – Meu hobby é velejar de windsurf. Em Brasília, velejo de laser. Faço isso desde que era criança. Fiz aulas no (clube) Minas Brasília.

BH – Você continua ouvindo música, está sempre ligado em novidades?


FL – Sim. Volta e meia faço gigs como DJ. Já discotequei em várias festas, aí em Brasília na Play!; no (pub) Amsterdam Street. Normalmente toco rock, mas gosto muito de eletrônica. Gosto de deep house, drum’n’bass, chillout, enfim, gosto do universo da música eletrônica. Procuro saber o que está acontecendo, quais são os novos grupos. Compro CDs, baixo música, faço minhas cópias, compro coisas no iTunes, veja as listas do Spotify, compro revistas. Continuo com aquela curiosidade de moleque. Coisa que eu sempre tive, desde que descobri o punk rock. Acho isso muito bom. Preciso ouvir sons novos. Tem gente que ouve AC/DC desde que era adolescente. E continua ouvindo a mesma coisa. Eu não sou assim. Gosto do AC/DC mas não é uma coisa que eu escuto quando estou em casa. Já faz uns anos que passei a ouvir jazz, principalmente o jazz clássico. Adoro Modern Jazz Quartet, Oscar Peterson; Miles (Davis) é sensacional; John Coltrane....

BH – Gosta de Bossa Nova?

FL – Gosto, mas não sou um aficionado. Gosto do samba-rock, a música brasileira dos anos 60 e 70. Esse som é extraordinário. Gosto de Hyldon, Cassiano; (Jorge) Ben Jor do início, Tim Maia. Passei a pesquisar muita coisa dessa área.

BH – Você usa vinil na sua discotecagem?

Fê Lemos, o homem das carrapetas
FL – Não. Uso laptop e um controlador Traktor. Já discotequei com vinil, mas o meu material é basicamente discos dos anos 80. Não entrei na onda de voltar a comprar vinil. Não vejo muito sentido em fazer isso atualmente. Respeito, claro. Se a música está bem gravada, e não está em um MP3 fuleiro, pouco importa a origem. O que importa é que o áudio tenha qualidade, que esteja em alta resolução.

BH – Enfim, sua matéria-prima de trabalho é a música.

FL – Minha coleção de CDs está toda ripada. Acho que dá uns 90 dias tocando sem repetir.


BH – Ouvi falar que você gosta do disco “Rua 47”, do Capital, lançado em 1995, com o Murilo Lima nos vocais. Esse disco tem uma pegada rock mais pesada. E sempre foi difícil de achar por aí.

FL – Esse foi um disco muito importante na carreira do Capital. Foi produzido por nós mesmos, em parceria com o Guilherme Canais, o engenheiro de som. Nesse eu sou autor de nove das onze letras. Nesse, o Flávio Lemos compôs músicas incríveis, como “Soltem os Leões”, “A Lei da Metralhadora”. O Loro Jones estava em uma das épocas mais inspiradas como guitarrista. E teve a participação do incrível Murilo Lima, que escreveu as melodias. É um disco visceral, grunge.


BH – Vi vocês tocando músicas desse disco em um show em frente ao Congresso Nacional, em 1995.

FL – Sim, tocamos com o Murilo Lima nesse show. Lembro que teve Plebe Rude e uns caras chamados Chico Science & Nação Zumbi. Foi a primeira vez que eu vi o Chico Science; já tinha ouvido falar deles, mas naquela vez foi especial. Eu estava no camarim, mas disse: “vou lá fora dar uma olhada”. Cara, quando vi aquilo, fiquei arrepiado. Aquilo foi foda. Para mim, eu estava vendo o futuro do rock brasileiro. E era. Pena que teve essa morte trágica. Nunca esqueci desse show na rampa do Congresso, em parte por causa do impacto que foi ter visto pela primeira vez o Chico Science.


BH – O primeiro disco ao vivo do Capital Inicial também é com o Murilo.

FL – A gente tentou muito com o Murilo. Fizemos com ele esse disco extraordinário, que é o “Rua 47”, um disco pesado, amargo, sofrido. Minha filha diz que quando começa a achar o pai um bunda-mole, ela coloca esse disco para tocar. Aí ela muda e diz: “Não. Meu pai arrebenta!”. Nesse disco, a gente tocou com uma vontade, uma garra incomum. A gente tava com umas coisas represadas há muitos anos. Talvez até pelas dificuldades que a gente teve, época em que o Bozzo Barreti entrou para a banda. Dificuldade de encontrar um novo estilo em meio àquela massa sonora que vinha dos teclados. A gente tava procurando se adaptar, tínhamos saído da história do punk rock. O Capital é essencialmente uma banda pós-punk. Éramos músicos limitados. O Bozzo era um maestro, o cara dominava os instrumentos. Foi uma época muito rica, com um confronto de ideias. Foi isso que gerou os melhores discos do Capital Inicial nos anos 80. Nos anos 90, fizemos esses dois discos sensacionais com o Murilo. Discos viscerais. Ali era uma banda de rock tocando sem dó nem piedade, sem preocupação com o mercado, com produtores, com prima-donas.

BH – É difícil achar esses discos, o “Rua 47” e o primeiro ao vivo.

FL – Viraram preciosidades, raridades. Nos sebos, você paga até R$ 500 por um exemplar. Ando conversando com o Loro, para a gente relançar o “Rua 47”. Mas não é fácil.

BH – Tomara. Obrigado pela conversa e pelo seu tempo. Vida longa. Não deixe de tocar rock. Eletrônica é importante, mas o rock é o tal.

FL – Hahaha. A gente nasce no rock e morre com ele.

This man rocks
Hotel Básico - Nem Mar, Nem um Puto

Hotel Básico - Funk do Bafômetro

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Uma pista de presente para Brasília

Vista aérea do Parque da Cidade de Brasília
Por falar em Brasília, a capital do Brasil completou 56 anos, em 21 de abril de 2016. Símbolo do Brasil moderno, a cidade também é sinônimo de outras coisas, positivas e negativas e, claro, não é unanimidade entre os brasileiros.

Esplanada dos Ministérios, Brasília
Começando pelo lado negativo, para muitos Brasília é um absurdo, nem deveria existir, pois parece que sua construção e manutenção como cidade administrativa ao longo de mais de meio século se dá às custas do suado dinheiro do povo brasileiro. Dinheiro esse que sempre foi roubado por governantes, incluindo os representantes dos três poderes definidos constitucionalmente. Não é de hoje que a repugnância causada por incontáveis escândalos envolvendo a coisa pública provoca repulsa e ojeriza por todos que se sentem atingidos. A solução simples seria acabar com Brasília.

Brasília vista a partir do mirante da Torre de TV
Do outro lado, temos os que percebem que a solução prosaica de apertar o botão e mandar tudo pelos ares reflete em verdade pensamento pueril, ignorante, em nossos dias algo inconcebível, pois a história é outra. Toda unanimidade é burra, não é o que diria Nelson Rodrigues? Ainda bem. Para encurtar: Brasília é predestinação. Estava prevista, desde que esta terra era colônia portuguesa. E viver nela, vivenciar seus espaços e sua história, é um convite ao autoconhecimento, à felicidade individual e coletiva. A vida é luta. A vida é luto é outra coisa.

Estádio Nacional de Brasília (Mané Garrincha)
Toda a crise que desabou na cabeça dos brasileiros, óbvio, também afetou Brasília. Tivemos a Copa do Mundo, em 2014, que prometeu deixar legados. Ficaram o estádio, caríssimo, o aeroporto entregue à iniciativa privada, alguns viadutos e só. Um certo veículo leve sobre trilhos (VLT), transporte integrado, soluções urbanas, tudo foi pelo ralo da corrupção e do mau uso do dinheiro público.

Paul McCartney, no Parque da Cidade de Brasília, em 21/11/2014
Em 2016, pouco a comemorar. Se estivesse por aqui este ano, Sir Paul McCartney veria o Parque da Cidade de Brasília um pouco diferente daquele que experimentou quando passou pela capital, em novembro de 2014.





O Parque da Cidade Dona Sarah Kubitschek, seu nome oficial, muito prazer, 37 anos depois de inaugurado finalmente ganhou uma pista nova, em asfalto, para abrigar, com segurança, pedestres, ciclistas, skatistas e patinadores. Eis um belo presente para Brasília.




Pode parecer pouco, coisa banal, uma pista a mais, um gasto a mais nas contas públicas, mas é a satisfação de uma necessidade, principalmente quando um grande número de pessoas correm para o Parque, para desfrutar de sua imensa área de lazer e se amontoavam na única pista, ainda que esta fosse segregada, com uma faixa à direita, para uso dos ciclistas.

Infográfico do jornal Correio Braziliense, de 2013, mostra a nova pista do parque


Não vamos falar dos custos dessa nova realização (na verdade, vamos: em 2014, o jornal Correio Braziliense falava em R$ 5,2 milhões), mas ressaltar que a nova pista renova, em Brasília, o predicado da civilização, da vivência compartilhada e respeitosa dos espaços públicos. Quem sabe, por vocação, Brasília talvez seja a cidade brasileira que mais valorizou a faixa de pedestres. Não é a que tem a melhor e nem a mais extensa malha cicloviária, mas certamente possui desde sua gênese a marca da urbanidade em sua forma mais virtuosa,





Dizem que a nova pista ainda será inaugurada com toda a pompa que só os governantes sabem dar a esse tipo de coisa. A sinalização vertical parece meio tímida, a horizontal está bem demarcada; é comum ver ciclistas e pedestres na pista errada. Não se trata aqui de determinar o uso correto sob o peso da lei, impor multas e sanções ao usuário por estar caminhando ou rodando no lado errado. Pelo menos para uma coisa a segregação das pistas pode ser boa: evitar acidentes.


Uma sugestão: o grande arremate pode vir na forma de campanhas educativas, para o uso consciente desses espaços. Quem sabe isso não vira (mais) um bom exemplo de cidadania em Brasília? Os patos e gansos do parque com certeza vão gostar.

Relógio solar de Oscar Niemeyer, no Parque da Cidade