sábado, 12 de agosto de 2017

O grande livro do Universo

Galileu Galilei (1564-1642)
A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode entender se antes não se aprende a compreender a língua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender suas palavras; sem eles, fica-se vagando em um labirinto escuro. 
(Saggiatore, 6)

Galileu, O Ensaiador, 1623


Olhando o grande livro da natureza, como diria Carl Sagan ou mais recente, Neil deGrasse Tyson, o céu é infindável, o infinito se espraia por todos os lados, o infinito é tudo. As maravilhas estão além do alcance dos olhos atentos, que mesmo sem nenhum instrumento ótico, tem no céu um misterioso manto de sabedoria, esperando para ser desvendado.

Neil deGrasse Tyson (1958 - )
Isso não é novidade. A história da Física e, por conseguinte, a história da Ciência nos contam invariavelmente que a linha evolutiva do pensamento racional (não a religião) começa com o homem primitivo aprendendo a sobreviver com o domínio do fogo e aperfeiçoando o conhecimento.

L'atmosphere (Camille Flammarion)
As coisas do mundo oriental, da Mesopotâmia pra lá, sabemos em fragmentos. O que se passou nos recônditos da Rússia, da China, da Índia e do saber milenar, os registros são escassos. O pensamento próspero da região entre o Tigre e o Eufrates (atual Iraque) sobreviveu em tabuletas de argila. A Babilônia e o Egito parecem histórias fantásticas. Coisas de 10, 15 mil anos atrás têm registros imprecisos.


Nada disso é novidade, os livros estão cheios desses detalhes. E a História é unânime em afirmar que é aos gregos que os ocidentais devem louvor. Que o pensamento ocidental deve louvor. Mesmo que os romanos não concordem com a premissa. Aliás, apenas quando a Europa medieval passou a conhecer os gregos foi que as coisas começaram a sair de longos anos de obscurantismo. Uma salva de palmas para a civilização islâmica que, lá por volta de 800 D.C., redescobriu os gregos e os reintroduziu na Europa, sem as estátuas peladas, claro.

A ciência pura na Grécia e região foi estupenda no século cinco antes do nascimento de Jesus Cristo. A sequência de feitos, na contagem regressiva até o ano zero da Era Cristã, contêm fatos e personagens que sobreviveram ao tempo. E moldaram o pensamento ocidental.


De acordo com a linha do tempo, Tales de Mileto (624-546 AC), os jônicos e os “sete sábios da Grécia” (Pitágoras, Empédocles, Aristóteles, Platão e outros mais), quer tenham acrescentado ou revisto a obra do filósofo anterior, praticamente disseminaram as bases sobre as quais desenvolveu-se e assentou-se o saber dominante da Era Contemporânea.

Demócrito (460-370 AC), o Gozador
Demócrito levou a fama por conceituar o átomo, mas antes e depois outros também ficaram conhecidos por tentar explicar o mundo não exatamente pelo viés criacionista, isto é, por uma vontade divina. Muito embora, muito embora, há quem diga que Platão atrasou a ciência por mergulhar a razão em devaneios idealistas.


Por que tudo isso? Apenas para servir como pano de fundo do episódio desta postagem, que trata de coisa prática, o desafio do ensino da Física à luz de tudo que nos envolve, incluindo a célebre dificuldade das instituições de ensino em atingir seus objetivos, pois – eis a Educação que temos – na retranca jogam os baixos salários e a falta de estrutura.

No time dos professores... bem, os profissionais da educação sabem muito bem o que significa atuar em campo esburacado e mal iluminado. Quanto aos estudantes, que desalento, parece que repetimos ladainhas de 60, 70 anos (ou mais) atrás. Que o digam aquelas avaliações internacionais que enquadram o ensino brasileiro na categoria de indigente. Com suas ilhas de exceções, sim, sim.


Daí chegamos ao final deste longo nariz de cera. Em Brasília, professores de Física se reuniram para discutir a relação e tratar dos temos relevantes à categoria. Normal, todo mundo faz isso. A Física é a tal ciência fundamental, base para todas as outras. É com a Física que explicamos a realidade, o jeito que o Universo funciona. Com ela desvendamos galáxias e os confins do universo, e também as partículas subatômicas. Vejam a importância dos professores de Física.

O encontro em Brasília também foi oportunidade para homenagear um dos grandes nomes da Educação neste país, que teima ter índices pífios de alfabetização e ensino aprimorado.


Não vamos falar mal do Brasil (é ruim falar mal do Brasil), mas vamos falar do Ph.D. pela Cornell University (EUA) Marco Antonio Moreira, professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em ensino de Ciências, Teorias de Aprendizagem e áreas correlatas. Professor Moreira foi homenageado no encontro dos professores de Física, realizado no Centro Internacional de Física da Matéria Condensada (CIFMC), campus da Universidade de Brasília (UnB).


A homenagem parece mais do que justa. Ele é considerado o criador do mestrado profissional em Ensino de Física e agora batalha pela criação e regulamentação do doutorado em Ensino de Física. Nada como ter a academia para preparar e polir nossas melhores mentes. Só que nem tudo é lindo e maravilhoso.

Professor Marco Antonio Moreira
Na palestra inaugural da VI Escola de Física Roberto A. Salmeron (EFRAS) e I International School on Physics Teaching (ISPT), o professor Moreira dissecou o significado de ser professor de Física à luz da Educação que escolhemos ter (ou a que nos é enfiada goela abaixo). Muito interessante, aos olhos leigos deste blog, perceber que todas a maravilhas da história da Física e da Ciência (em outras palavras, a nossa história), pouco inspiram ou saciam a sede de saber, como um dia fizeram com os tais gênios da humanidade.


Levas e levas de estudantes, gerações, não é de hoje, repetem o aprendizado prático, mecanicista; estudam para as provas, para as avaliações, para os diplomas, para os concursos. E haja esforço mental para decorar as informações. “A aprendizagem mecânica tira a liberdade do educando; não forma, domestica”, critica o professor Marco Antonio Moreira, sabedor de que os problemas começam na infância e desancam no mestrado: “Os mestrandos têm dificuldades com a escrita, com saber expressar seus pensamentos em uma tese”.

Richard Feynman (1918-1988)
Mas, espera um instante. Outro dia comentamos aqui a respeito do físico quântico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), Nobel de Física em 1965, que passou pelo Brasil no início dos anos 1950. Feynman trocou a Princeton e a Cornell University, as lembranças de Los Alamos, e de sua falecida primeira esposa Arline Greenbaum, para viver uma aventura no Rio de Janeiro.

Aventura, claro, tinha uma mulher envolvida na história e também um certo apreço por tocar frigideira em um bloco de Carnaval, de Copacabana. Fatos deliciosamente relatados no livro Surely you’re joking, Mr. Feynman.


Mas, no capítulo do livro em que descreve a passagem pelo Brasil, Feynman registra, entre o constrangido e o embasbacado, que seus alunos na Universidade do Rio de Janeiro (atual UFRJ) eram uns cdfs, reis da decoreba. O que lhe veio à mente foi um instantâneo dos caminhos da Educação no Brasil: um sistema que se modela por baixo e por baixo permanece. Estamos falando de 1952. Lá se vão sessenta e tantos anos, com a ressalva de que no livro, Feynman nada fala sobre o salário dos professores daquela época.


Voltando ao professor Marco Moreira, no todo desse sistema, a parte que cabe aos professores é condição primordial. Aqui, parte do discurso de agradecimento pela homenagem recebida durante a VI Escola de Física Roberto A. Salmeron (EFRAS) e I International School on Physics Teaching (ISPT):

Infelizmente, no Brasil os professores têm um salário indigno. Estamos valorizando os professores em termos de conhecimentos, de experiências didáticas, de como ensinar melhor a Física. Creio que muitos vão se interessar por um doutorado profissional. Isso terá contribuição para o doutorado profissional em ensino. Mas espero que se resolva a questão dos salários indignos e das condições de trabalho. É uma vergonha, pois o governo fala que a educação é a coisa mais importante no país; todos falam, todos os políticos, todos os governos, enquanto os professores são tratados de maneira indigna. Por enquanto, nossa luta segue com a valorização do professor, no sentido de oferecer mestrado profissional e doutorado profissional. Temos tido resistência da academia, o Brasil... a nossa cultura é altamente acadêmica. Tanto é que sempre se distingue entre a produção intelectual e a produção técnica, como se esta não tivesse nada de intelecto. Isso é um absurdo. Um paper publicado, em uma revista que ninguém vai ler, vale muito mais do que um livro que a pessoa passou quatro anos escrevendo. Essas coisas estão mudando, mas pouco a pouco.

O Blog do Hektor conversou com o professor Marco Antonio Moreira.

Blog do Hektor – Professor, vimos na sua fala uma certa angústia dos educadores, no sentido de se fazerem compreendidos em suas muitas frentes de batalha. Não falamos somente das coisas ditas dentro das salas de aula, mas que sirvam para a vida prática, o desenvolvimento humano dos alunos. Enfim, o sentido filosófico da Educação. Por quê ainda estamos falando hoje, Século XXI, de coisas que eram ouvidas tempos atrás?

Marco Antonio Moreira – Não acho que sejam coisas de tempos atrás. Acho que estamos hoje falando com mais força. Esse treinamento não era tão forte como é hoje. Atualmente, toda a educação é voltada para o treinamento para a testagem. Sejam os testes nacionais, sejam internacionais. Não há a Ciência para a cidadania. É um direito que as pessoas têm de aprender ciência. Nosso mundo tem Física, tem Biologia, tem Química, então, tem que aprender isso com significado. Como nossa cultura e nosso sistema estão voltados para a testagem, os alunos só se preparam para as respostas corretas. Dessas respostas corretas, não sobra nada. Além disso, o fato de o aluno dar a resposta correta, não significa dizer que ele compreendeu, que ele vá usar aquilo depois.

BH – Isso não é só no Brasil.

MAM – Não. Infelizmente é a pressão internacional. Não importa se é um país capitalista, socialista ou comunista. Todo mundo está nessa do treinamento para a testagem. Tanto é que existe um termo internacional, já consagrado: o teaching for testing.

BH – O Richard Feynman reclamava de algo assim, quando esteve lecionando no Brasil, no início dos anos 1950. São mais de 60 anos de lamúrias e queixas contra a educação decoreba.

MAM – É quase que um crime educacional a criança passar 12 anos na escola, decorando coisas. Falaram aqui de coisas interessantes, como dar um outro sentido às feiras de ciências, mas prevalece o esquema de se preparar para a prova, o que significa uma aprendizagem puramente mecânica. Tem que saber a resposta, não importando se o aluno entendeu realmente o seu sentido. O que interessa é saber a reposta correta.

BH – Quando uma pessoa se debruça sobre a história da Ciência, a história da Física, ela percebe que, longe de toda a rede de cálculos necessária para o entendimento dos problemas, o que fica é o sentido filosófico de tudo. As pessoas não se dão conta de que a história da Física e da Ciência é a própria história da humanidade? Por quê se deixam solapar por preconceitos e visões distorcidas?

MAM – Acho que essa parte – a história da Física e da Ciência – deveria ser incorporada não só no sentido de datas e historiografia. Uma grande revolução na Física foi a quantização da energia. A mudança da Física clássica para a Física quântica. Seria interessante ver como foi difícil chegar a essa ideia de que a energia é quantizada. Como se tentava mostrar que a energia não é contínua. A Relatividade também tem uma história, até que a gente chegasse a ideia de que o tempo e o espaço não são absolutos, são relativos. O aluno aprende quantização, mas deve sentir dificuldade em imaginar o que vem a ser isso, o que vem a ser uma partícula elementar. Temos uma cultura que indica que (a partícula elementar) é uma bolinha. É preciso um pouco de história, para a gente ver quando foi que a gente abandonou essa ideia da bolinha. É importante a história, mas com o viés de como essas disciplinas evoluíram historicamente. Não só ficar endeusando nomes e sabendo as datas dos fatos.

BH – Para os leigos é um tormento entender a Física newtoniana. A Física quântica, então, nem se fala. A Física do muito grande versus a Física do muito pequeno.

MAM – Tem que ver como o Newton e o Einstein chegaram a essas ideias. Esquece aquela coisa do insight, o cara teve um momento genial.

BH – Uma maçã que caiu na cabeça do Newton.

MAM – Sim.

BH – O senhor crê que a religião é um fator impeditivo desse livre pensamento?

MAM – Não. Respeito, mas se estou ensinando Física, quero que meus alunos entendam qual a é visão da Física. Se eles vêm com a visão da Religião, essa é outra visão. O ser humano tem essa condição de olhar o Universo com distintas visões. Não quero ensinar Física dizendo aos alunos que eles têm que abandonar a Religião. Religião é outra maneira de ver a humanidade. Estou aqui trabalhando com a maneira científica de ver a humanidade. Eventualmente podem haver contradições, mas nos cabe ver como vamos fazer para compatibilizar essas coisas. Não concordo com a ideia, que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, que proíbem o darwinismo, porque ensinam o criacionismo. Qual é uma visão e qual é a outra?

BH – Essa briga darwinismo versus criacionismo ecoa no Brasil?

MAM – Não sei dizer.

BH – O senhor é religioso?

MAM – Não. Respeito profundamente as religiões. Defendo a ideia de que há muitas visões de mundo. Respeito quem tem visão diferente da minha.

Professor Marco A. Moreira


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